100 Anos Portimão Cidade Centenária

Biblioteca de Cordas e Nós: Segunda Pele

Museu do
Tempo

José Antonio Portillo (Espanha)

A BIBLIOTECA DE CORDAS E NÓS é uma misteriosa biblioteca móvel com uma estrutura circular de madeira que guarda manuscritos inéditos, textos nunca publicados, partituras, desenhos, objetos encontrados no lixo e cilindros cheios de mensagens feitas de cordas e nós. No âmbito da programação artística criada pela Lavrar o Mar – Cooperativa Cultural para a celebração do Centenário de Elevação de Portimão a Cidade (1924-2024), ao abrigo de uma parceria estabelecida com o Município de Portimão, esta instalação-espetáculo chegou a Portimão em 2024 e trouxe consigo uma SEGUNDA PELE que a circunda.

A SEGUNDA PELE da BIBLIOTECA DE CORDAS E NÓS propõe a possibilidade de imaginar o futuro da cidade de Portimão através de dois projetos: o MUSEU DO TEMPO e CAMINHOS ORGÂNICOS.

O MUSEU DO TEMPO de Portimão reúne objetos que pertenciam a 22 pessoas (crianças e adultos) e que foram enterrados em diferentes lugares da cidade e arredores. Foi-lhes proposto que escondessem objetos debaixo da terra para que os “homens cinzentos” não pudessem roubar as memórias que guardavam. E que revelassem as razões pelas quais decidiram enterrar essas recordações singulares das suas vidas que, simultaneamente, constituem uma memória coletiva, representando vivências e experiências que podem ser comuns a tantas outras pessoas de Portimão.

A coleção de objetos que foram enterrados permite-nos também descobrir uma realidade invisível que palpita nesta cidade feita de uma mudança no comportamento social e individual da mulher, de uma nova configuração da cidade e do seu ecossistema,
do desaparecimento de espaços onde se forjavam as relações sociais, de alterações na atividade comercial e económica, da forte presença do associativismo, da sensibilidade perante o que é diferente e da capacidade de empatizar com o outro, da perda de ofícios e de uma parte da cultura popular. As memórias escondidas nos objetos já não pertencem a estas 22 pessoas de Portimão. Agora pertencem-nos a todos. Basta descobri-los, enquanto caminha pela cidade.

IDEIA ORIGINAL E DIREÇÃO: José Antonio Portillo
COMPILAÇÃO E COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS: Matilde Real e Rita Rodrigues
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Lavrar o Mar – Cooperativa Cultural

MAPA DO MUSEU DO TEMPO

01 ANTÓNIO
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01 ANTÓNIO

Os homens sabem muito pouco a respeito das mulheres. Ao falar com elas descobri muita coisa. A sensibilidade da mulher é muito grande. Uma mulher tem sempre coisas mais interessantes a dizer do que um homem. Eu tenho na família mais mulheres do que homens.

Sou muito romântico. Tenho 65 anos de casado e estou em Portimão há 53 anos, e toda a minha vida tratei os números por tu, nos trabalhos que tive. Quando estava em Lagos, ofereceram-me um trabalho nos Açores, Ponta Delgada. Telefonei para ela: “Queres ir para os Açores com as duas miúdas?” e ela respondeu “Para onde tu fores eu também vou.” Foi muito importante para mim essa resposta. Escrevemos tantas cartas um ao outro mas as nossas filhas gostavam de ver, então rasgámos tudo. Depois de morrermos as outras pessoas ainda iam ver o que se passava!

Tive aulas de estenografia. É uma técnica de escrita que já não existe. Esta é a minha caligrafia. Está aqui tudo explicado, o significado dos símbolos correspondentes a cada letra do alfabeto. Por exemplo: A-M-O-R. A mensagem fica oculta. A estenografia já não se utiliza, dantes os repórteres usavam porque não havia gravadores e escreviam muito mais rápido. Eu anotava canções da rádio em tempo real, e conseguia escrever tudo a tempo. Ouvia a Rádio Fóia, na frequência 97.1, que tinha muitas canções de amor.* Tive 19 valores no exame de estenografia. Na caligrafia quase que chumbei. O professor queria o joelho em ângulo recto, o tronco direito, a mão assim, o dedo assim, o pulso assim…

Estes são meus versos. Já não os sei traduzir para o nosso alfabeto… foi em 1942! Passei à máquina muitos poemas de Casimiro D’Abreu, um grande poeta brasileiro, e esta é a minha história, que adaptei dele: “Passou a idade infantil, entrei nos meus 15 anos e minha alma de adolescente, opulenta de seiva, rica de sentimento, expandiu-se livre a todos os afectos nobres e santos como a flor da solidão aos raios do sol nascente. Amei. Quem deixa de amar aos 15 anos? Quem, se nessa idade a nossa alma se apaixona tão facilmente?” O Casimiro D’Abreu, para mim, é o mais romântico.

Eu apresento sempre a minha mulher como minha namorada. Tenho uma pequena colecção de isqueiros. Nestes três isqueiros havia imagens de mulheres. Estão esbatidas, a tinta tem desaparecido, mas o isqueiro tem lume. É sinal de que o meu romantismo ainda está vivo. E está! Vou enterrar, com os três isqueiros, as letras de canções e poemas que transcrevi utilizando a técnica da estenografia.

* Recentemente, a Rádio Fóia alterou o seu conteúdo para transmitir a Mega Hits, para público jovem: Dance, Urban e Hip Hop.

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Men know very little about women. By talking to them, I’ve discovered a lot. A woman’s sensitivity is immense. A woman always has more exciting things to say than a man. In my family, there are more women than men.

I am very romantic. I’ve been married for 65 years and have been in Portimão for 53 years, and throughout my life, I always worked with numbers. In Lagos, I was offered a job in the Azores, in Ponta Delgada. I called my wife and asked, “Do you want to go to the Azores with the two girls?” And she replied, “Wherever you go, I’ll go too.” That answer was very important to me. We wrote many letters to each other, but our daughters liked to look at them, so we tore everything up. After we died, other people would still be able to see what was going on!

I took classes in stenography. It’s a writing technique that no longer exists. This is my handwriting. Here, everything is explained—the meaning of the symbols corresponding to each alphabet letter. For example: L-O-V-E. The message stays hidden. Stenography is no longer used; reporters used it back in the day because there were no recorders, and it allowed them to write much faster. I used to jot down songs from the radio in real time and managed to write everything down on time. I listened to Rádio Fóia, at frequency 97.1, which had many love songs*. I scored 19 out of 20 on my stenography exam. In handwriting, I almost failed. The teacher wanted my knee at a right angle, torso straight, hand like this, finger like that, wrist like this…

These are my verses. I no longer know how to translate them into our alphabet… it was in 1942! I typed many poems by Casimiro de Abreu, a great Brazilian poet, and this is my story, which I adapted from him: “I passed the childhood years, entered my 15th year, and my adolescent soul, full of sap, rich in feeling, expanded freely to all noble and sacred affections, like the flower of solitude to the rays of the rising sun. I loved. Who stops loving at 15? Who, at that age, when our soul falls in love so easily?” For me, Casimiro de Abreu is the most romantic poet.

I always introduce my wife as my girlfriend. I have a small collection of lighters. These three lighters had images of women on them. They are faded now; the paint has worn away, but the lighter still lights up. This is a sign that my romanticism is still alive. And it is! I will bury the three lighters and the song lyrics and poems I transcribed using stenography.

* Recently, Rádio Fóia changed its content to broadcast Mega Hits with dance, urban, and hip-hop music for a younger audience.

02 ARLINDO
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02 ARLINDO

Tenho sempre uma tela, uma peça de madeira, uma pedra para continuar. Esta pequena escultura de resina deu origem a outra peça, muito maior. Foi o meu primeiro estudo. É uma figura mitológica, a Nereida, uma das musas marinhas que falam ao ouvido de Camões e ajudam os marinheiros em perigo. A água é sempre uma constante na minha vida.

Tenho uma ligação forte com Portimão. É aqui o meu porto de abrigo, a minha relação com a água. Esta história começou há mais de 30 anos. Os artistas, quando iniciam a carreira, debatem-se com grandes injustiças. Muitas vezes vão à procura de um local para expor e ninguém lhes abre as portas. Eu tinha obra, agarrei o meu portefólio e comecei a percorrer galerias: “Não. Não. Não. Obrigado, já tenho os meus artistas.” Alguns nem sequer queriam ver, não tive essa hipótese. Um dia decidi: se não há galerias que mostrem o meu trabalho, vou fazer a minha própria galeria.

Mesmo assim continuei à procura de quem aceitasse a minha obra. O Michael Tannock era um estrangeiro que representava artistas portugueses e internacionais, e creio que tinha a única galeria em Portimão com ligações importantes. Eu sentia-me intimidado ao chegar diante dele, que me recebeu sem marcação. Um pintor vai pintando, um escultor vai esculpindo, mas depois precisa de mostrar essas obras. O trabalho de um artista terá de ser aberto, para mostrar ao mundo quem ele é e aquilo que ele faz. Foi o Michael Tannock que respondeu a esse anseio. “Sou artista plástico mas não tenho currículo.” Ele respondeu: “Para mim não interessa o currículo, interessa a arte.” Foi a primeira porta que se abriu na cidade. O meu reconhecimento é deixar esta escultura no local onde outrora esteve a galeria, na Rua Santa Isabel. Esse lugar mudou a minha vida e deu-me asas para voar, sair, voltar com nova informação, mais culto, mais desperto.

Um dia, um artista suíço viu o meu trabalho e quis conhecer-me. Sentámo-nos no banco de jardim ao pé da galeria e convidou-me para um simpósio na Suíça. Eu trouxe a ideia para cá e criei o Simpósio Internacional de Escultura, que vai na 9ª edição. Transportei artistas dos seus ateliês para a rua. Imaginem cinco escultores com máquinas, a fazer pó e barulho, e as pessoas indignadas a passar. Quando começavam a ver uma forma, olhavam mais atentamente. Uma semana depois, com as peças terminadas, as pessoas diziam: “Estas obras são nossas, são daqui.” Estão dispostas à beira-rio. Temos mais de 40 obras e 30 nacionalidades. Comecei sem galeria e acabei por criar uma grande galeria partilhada, ao ar livre. Agora vou enterrar a minha pequena peça e dou lugar às esculturas dos outros.

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I always have a canvas, a piece of wood, or a stone to keep me going. This small resin sculpture led to another, much more significant piece. It was my first study. It is a mythological figure, Nereida, one of the sea muses who speaks to Camões and helps sailors in danger. Water has always been a constant in my life.

I have a strong connection with Portimão. This is my safe harbour, my bond with the water. This story started over 30 years ago. When starting their careers, artists struggle with great injustices. Often, they look for a place to exhibit, but no one opens the doors. I had work to show, so I took my portfolio and went around galleries: “No. No. No. Thank you, I already have my artists.” Some didn’t even want to look; I didn’t get that chance. One day, I decided that I’d make my own gallery if there were no galleries to show my work.

Even so, I kept searching for someone who would accept my work. Michael Tannock was a foreigner who represented Portuguese and international artists. I believe he had the only gallery in Portimão with significant connec­tions. I felt intimidated when I approached him, as he received me without an appointment. A painter keeps painting, a sculptor keeps sculpting, but then they need to show their works. An artist’s work must be open to show the world who they are and what they do. It was Michael Tannock who answered that need. “I’m an artist, but I don’t have a résumé,” I told him. He replied, “I’m not interested in a résumé; I’m interested in art.” That was the first door that opened for me in the city. My way of honouring that is to leave this sculpture at the place where the gallery once stood, on Santa Isabel Street. That place changed my life and gave me wings to fly, to go out, and come back with new insights, more knowledge, and more awareness.

One day, a Swiss artist saw my work and wanted to meet me. We sat on the park bench near the gallery, and he invited me to a symposium in Switzerland. I brought the idea back here and created the International Sculpture Symposium, now in its 9th edition. I took artists from their studios and brought them to the street. Imagine five sculptors with tools, making dust and noise, with people walking by, annoyed. But they looked more closely when they started to see a shape take form. A week later, with the pieces finished, people would say, “These works are ours; they belong here.” They’re placed along the riverfront. We have over 40 works and 30 nationalities. I started without a gallery and ended up creating a large, shared outdoor gallery. Now, I’m going to bury my small piece and make way for the sculptures of others.

03 MARIA P
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03 MARIA P

A minha avó dizia: “A alegria é a coisa mais séria da vida”. Chamava-se Catarina. Todos os dias me lembro dela. Sou de uma aldeia que fica na fronteira com Espanha. Aqui chamam-me Maria da Raia. A minha avó, à noite, fazia contrabando de café e os guardas nunca a apanharam. Tenho este candeeiro de petróleo, que lhe pertencia. Ela foi a luz da minha vida e continua a ser.

Na minha bata está escrito: “Receito alegria”. Há 14 anos que sou médica-palhaça, era um sonho de criança. O hospital de Portimão deu-me isso. O Fernando Melo, pediatra, viu como eu brincava com as crianças e disse que eu parecia mesmo uma palhaça. Ofereceu-me o meu primeiro estetoscópio. O doutor Fernando, a doutora Nancy, a educadora Helena e outros crêem na importância da alegria para a saúde.

Trabalho no centro de saúde como administrativa, ao computador, todos os dias. Muitas vezes os enfermeiros dizem “Vem aqui Pepita, que o bebé está a chorar!”. Eu faço qualquer coisa, o bebé sorri e já está, levou a injeção. Entrego um diploma e dou a receita da alegria, “duas vezes ao dia, de manhã ao levantar e à noite ao deitar. Em caso de sobredosagem não faz mal.” Digo isto muito séria! Levo música, bolas de sabão, livros. Levo esta flor com água. Às vezes disparo para as caras dos médicos! Há um menino que, dez anos depois, me vê na rua e vem abraçar-me. Isso vale tudo.

Eu costumava usar uns sapatos muito grandes. Parei um ano porque estive doente. No dia anterior ao último tratamento todos estavam tristes e pensavam que iam morrer. Eu disse: “não vou morrer e vocês também não. Amanhã venho de palhaça.” Eles sorriram nesse dia. Tirei a roupa para o tratamento mas os sapatos ficaram nos pés. Não se falou da morte. Um médico dizia: “nunca fiz radioterapia a um palhaço!”. Tirei as calças para entrar no scanner mas fiquei com os sapatos, assim para cima, na maca.

A minha avó teve tristezas, eu também, mas há que dar a volta. O mundo não precisa da nossa tristeza. Saio do hospital, respiro fundo e vou para a vida, tenho o teatro, a música, a praia, um pouco de ar. E volto. A minha avó sempre me disse: “Vou morrer, quando chegar o meu dia. Um dia será o teu. Mas digo-te uma coisa: nada importa se não tocares o coração do outro”. Faço isso na minha vida, no meu trabalho no hospital. Essa é a minha missão.

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My grandmother used to say, “Joy is the most serious thing in life.” Her name was Catarina. I think of her every day. I’m from a village on the border with Spain. Here, they call me Maria da Raia. My grandmother smuggled coffee at night, and the guards never caught her. I have this oil lamp that belonged to her. She was the light of my life and still is.

On my smock, it says, “I prescribe joy.” For 14 years, I’ve been a clown doctor—it was a childhood dream. The hospital in Portimão gave me that chance. A paediatrician, Dr Fernando Melo, saw how I played with the children and said I looked like a clown. He gave me my first stethoscope. Dr. Fernando, Dr. Nancy, educator Helena, and others believe in the importance of joy for health.

I work at the health centre as an administrative assistant, on the computer daily. Often, the nurses say, “Come here, Pepita, the baby is crying!” I do something, the baby smiles, and there, it’s done—they’ve gotten the injection. I give a diploma and prescribe joy “twice daily, in the morning when you wake up and at night before bed. In case of overdose, don’t worry!” I say this very seriously! I bring music, soap bubbles, books. I get this flower with water. Sometimes, I squirt it at the doctors’ faces! There’s a boy who, ten years later, sees me in the street and comes to hug me. That’s worth everything.

I used to wear huge shoes. I stopped for a year because I was ill. On the day before my last treatment, everyone was sad and thought they were going to die. I said, “I’m not going to die, and neither are you. Tomorrow, I’ll come dressed as a clown.” They smiled that day. I took off my clothes for the treatment but kept the shoes on my feet. No one spoke of death. A doctor said, “I’ve never done radiation therapy on a clown!”. I took off my trousers to enter the scanner,but I kept my shoes on, placed them on the stretcher, like this.

My grandmother had her share of sadness, and so have I, but we must turn things around. The world doesn’t need our sadness. I leave the hospital, take a deep breath, and live. I have theater, music, the beach, and some fresh air. And then I go back. My grandmother always told me, “I will die when my day comes. Someday, yours will come too. But let me tell you something: nothing matters if you don’t touch another’s heart.” That’s what I do in my life, in my work at the hospital. That’s my mission.

04 EMÍDIO
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04 EMÍDIO

Eu não nasci cá. Nasci lá, em Angola, a terra que escolheram os meus pais. E o que tenho não é um objecto, mas uma recordação com um milésimo de segundo: um sorriso.

O êxodo de África foi o maior do século XX. Milhões de pessoas vieram para Portugal: aviões, barcos, tudo. O meu pai fez a sua vida em Angola e não queria voltar. Conhecia todos os quadrantes da guerra, havia amigos em todo lado. Eu tinha 8 anos, vim com a minha mãe e irmãs, mas ele ficou. Fomos de Lobito para Luanda, para Lisboa, para a Póvoa de Varzim, onde tínhamos família.

O meu pai acabou por voltar. Foi buscar-nos e viemos para o Algarve porque o clima era mais parecido com o de Angola. Conseguiu um trabalho como mecânico, aqui em Portimão. Comecei a escola e jogava futebol no Portimonense. Estava sempre um pouco perdido, era um momento complicado. Começávamos no estádio e íamos a correr até onde fica agora o Continente. O parque de estacionamento era um campo de futebol. Havia um desnível onde os pais ficavam a ver os filhos. O meu pai veio um dia, sem avisar. Olhei, ele estava lá sentado e fez-me um sorriso. Esse sorriso foi a certeza de que íamos ficar cá. Dizia: “Eu estou aqui. Fica tranquilo”. Lobito, a terra onde nasci, estava neste sorriso. Soube que não ia voltar.

Estudei Matemática na Universidade. Fiz Cinema, Teatro. Depois chamaram-me para a tropa e deram-me uma folha com uma lista de possibilidades. Escolhi cozinha. Todas as coisas diferentes por onde passei fazem sentido quando pego numa faca e começo a cozinhar: Matemática, Cinema, Teatro. Gostaria de cozinhar como Kerouac escrevia. Misturo tudo um pouco: África, Portugal, dou um toque africano ao bacalhau.

Não sei o que dizer em relação ao objeto. É como o peso do fumo no filme Smoke, em que uma personagem está a fumar um cigarro, pesa-o antes, e depois coloca as cinzas na balança. A diferença entre os dois é o peso do fumo. Posso escrever esta história num livro, pesá-lo, depois vou buscar um maçarico que tenho ali na cozinha, queimo o livro e pesam-se as cinzas. A diferença será o peso do fumo da memória.

Gostava de enterrar a história queimada no lugar onde o meu pai sorriu. Podemos criar uma fórmula matemática para esse sorriso. Sempre que paro lá o carro apetece-me jogar futebol. As pessoas vão ficar a saber que naquele parque de estacionamento houve um campo onde rapazes como eu costumavam jogar. Não nasci cá, mas através do sorriso do meu pai compreendi que esta iria ser a minha cidade.

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I wasn’t born here. I was born in Angola, the land my parents chose. And what I have isn’t an object but a memory that lasts a millisecond: a smile.

The exodus from Africa was the largest of the 20th century. Millions of people came to Portugal: planes, boats, everything. My father built his life in Angola and didn’t want to return. He knew every angle of the war and had friends everywhere. I was eight years old; I came with my mother and sisters, but he stayed behind. We went from Lobito to Luanda, Lisbon, and Póvoa de Varzim, where we had family.

My father eventually returned. He came to get us, and we moved to the Algarve because the climate was closer to Angola’s. He found a job as a mechanic here in Portimão. I started school and played soccer for Portimonense. I was always a bit lost; it was a complicated time. We’d start at the stadium and run to where the Continent supermarket is now. The parking lot was a soccer field. There was a small hill where parents would watch their kids. One day, my father came unannounced. I looked over, and he was sitting there and gave me a smile. That smile was the certainty that we were going to stay here. It said, “I’m here. Be at peace.” Lobito, the place where I was born, was in that smile. I knew then that we weren’t going back.

I studied Mathematics, Cinema, and Theater at university. Then, I was called to the military and given a sheet with a list of options. I chose the kitchen. All the different paths I took make sense when I pick up a knife and start cooking: Mathematics, Cinema, and Theater. I want to cook the way Kerouac wrote. I mix everything a little: Africa and Portugal. I add an African touch to “bacalhau”.

I don’t know what to say about the object. It’s like the weight of smoke in the film Smoke, where a character smokes a cigarette, weighs it beforehand, and then places the ashes on the scale. The difference between the two is the weight of the smoke. I could write this story in a book, weigh it, then take a blowtorch from the kitchen, burn the book, and weigh the ashes. The differ­ence would be the weight of the smoke of memory.

I want to bury the burned story where my father smiled. We could create a mathematical formula for that smile. Every time I park my car there, I feel like playing soccer. People should know that in that parking lot, there once was a field where boys like me used to play. I wasn’t born here but understood this would be my city through my father’s smile.

05 GABRIELA
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05 GABRIELA

Este é o Pompom. Foi o primeiro boneco em que toquei. A minha mãe comprou-o quando estava grávida. Dou sempre um nome aos meus bonecos. Chama-se Pompom Kiconico Maria Correia Fernandes. Tem dois nomes próprios e o resto é de família. Às vezes não faço a cama e deixo lá os meus bonequinhos agarradinhos uns aos outros. Antes de ir para a escola dou beijinhos a cada um. Nas noites em que tenho medo pego em todos e digo para me protegerem. O meu maior medo é morrer. Acho a vida solitária, a branco e preto, e não sei se há retorno. Não sei se se revive ou se não, mas sei que se as pessoas se esquecem, a sua alma morre. Por isso lembro-me sempre do meu cão. Acredito em Deus e não percebo porque é que as pessoas dizem que a ciência é o contrário de Deus.

O Pompom tem cicatrizes, um corpo que se adapta como uma manta e uma orelha maior que a outra para explicar que não faz mal sermos diferentes. No meu grupo de amigas todas somos muito diferentes. Eu sou a única que gosta de verde-água, não sei porquê. Quando as pessoas gozam com outras eu digo para pararem, toda a gente é diferente. A Elisa tem óculos, outros têm cores de pele diferentes, umas são mandonas, outras doces, outra das minhas amigas nasceu de cesariana e ainda por cima tem asma. Eu amo uma das minhas amigas e ela odeia-me. Habitualmente quando alguém te odeia, tu odeias de volta. Eu não faço isso. Por mais que eu tenha vontade de odiar não consigo. Pensava que ser diferente era mau, mas a partir dos sete anos comecei a pensar que ser diferente é bom. O Pompom sabe quem é diferente.

Dá para ver a diferença entre uma pessoa que está apaixonada e outra que não está. Na minha escola é só veres quem está a perseguir quem. O que está apaixonado normalmente persegue, mas às vezes são os dois que estão apaixonados: o que persegue e o que é perseguido. Também há pessoas tímidas. O Pompom sabe distinguir as pessoas que são sensíveis e tímidas. Ele tem um olho que vê quem é inteligente. O outro olho sabe quem está triste, e quem tem problemas de saúde.

Gostava de enterrá-lo num sítio calmo, onde andasse de bicicleta. Para mim o rio parece o mar, confundo os dois. Quando enterrar o Pompom ao pé do rio nunca mais os vou confundir. Já tenho o lugar na minha cabeça. Tenho muito respeito pelo meu boneco e também vou ter esse respeito pelo lugar onde for enterrado. Depois, vai ser como se eu olhasse pelos olhos dele.

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This is Pompom. He was the first stuffed animal I ever touched. My mother bought him when she was pregnant. I always give my toys a name. His full name is Pompom Kiconico Maria Correia Fernandes. He has two first names, and the rest is the surname. Sometimes, I don’t make bed and leave my little toys snuggled up together. Before going to school, I give each one a little kiss. On nights when I’m scared, I gather them all and ask them to protect me. My biggest fear is dying. I think life feels lonely, in black and white, and I don’t know if there’s a return. I don’t know if you come back to life or not, but I know that if people are forgotten, their soul dies. That’s why I always remember my dog. I believe in God, and I don’t understand why people say science is the opposite of God.

Pompom has scars, a body that adapts like a blanket, and one ear bigger than the other to remind me that it’s okay to be different. In my friend group, we’re all very different. I’m the only one who likes sea green, and I don’t know why. When people make fun of others, I tell them to stop—everyone is different. Elisa wears glasses; some have different skin colours, some are bossy, others are sweet, and one of my friends was born by C-section and even has asthma. I love one of my friends, and she hates me. Usually, when someone hates you, you hate them back. I don’t do that. No matter how much I want to hate back, I can’t. I used to think being different was wrong, but when I turned seven, I thought being different was good. Pompom knows who is different.

You can see the difference between someone in love and someone who isn’t. At my school, you just have to see who’s chasing who. The one in love usually does the chasing, but sometimes both are in love: the chaser and the one being chased. There are also shy people. Pompom can tell who’s sensitive and shy. He has one eye that can see who’s smart. The other eye can see who’s sad and who has health problems.

I want to bury him somewhere peaceful, where I could ride my bike. The river seems like the sea—I confuse the two. When I bury Pompom by the river, I’ll never confuse them again. I already have the spot in my mind. I have a lot of respect for my toy, and I’ll have that same respect for where he’ll be buried. Afterwards, it’ll be like I’m looking through his eyes.

06 FÁTIMA
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06 FÁTIMA

A minha mãe tinha 15 anos quando me teve. Nunca conheci o meu pai. Até aos sete anos vivi com a minha avó em Portimão. Tive duas madrinhas: A Beatriz, que foi para o Brasil, e a Adelina, que vivia cá. As duas sempre com um olho em mim. A Adelina era uma mãe para mim.

Este missal acompanhou-me desde que comecei a catequese, aos sete. Sou católica, mas só se me apetecer é que vou à missa. Este livro esteve sempre presente. Quando fechar o olho isto vai fora, por isso prefiro ser eu a enterrá-lo. Eu sou a Maria do deita-fora, tanta coisa mando embora e isto não, é um consolo que tenho comigo. Nas mudanças de casa veio sempre. Sentia-me bem a ler isto, sentia paz. Foi a minha madrinha Adelina que me deu. Era uma pessoa com a mente muito aberta para a época, uma mulher que fez o que quis. O marido um dia levantou a mão para lhe bater. Ela não esteve com meias medidas, pediu a separação. Tinha uma personalidade forte. Isto há 60 anos. Era o que muitas mulheres precisavam de fazer.

Aos 17 anos comecei a namorar. Casei e fiquei grávida meses depois. Ele ia trabalhar e só vinha para casa aos fins-de-semana. Eu tomei as rédeas de tudo e tive de ser independente. O meu segundo marido foi o José Alegria. Ele dizia: “A minha religião é não sacanear ninguém”. O Alegria era as minhas pernas, ajudava muito em casa. O meu primeiro marido não fazia nada.

Fui operada aos 21 anos e fiquei encantada com o trabalho de voluntariado das senhoras que vi. Isso marcou-me. Então aos 56 anos comecei no voluntariado na Flor Amiga, associação que apoia famílias carenciadas, e depois fui para o hospital. Senti que tinha de retribuir aquilo que tinha recebido da minha madrinha. Na Flor Amiga sou vice-presidente, giro a parte alimentar, inscrevo muitas famílias. São 80 famílias e funciona através de donativos. Há muita gente que precisa. Trabalhamos muito.

Vou enterrar o missal, um folheto da Flor Amiga e o chapéu da pesca do Alegria. Ele gostava muito de pescar. O grande problema do confinamento foi não poder ir à pesca. Ele ia à pesca na Praia da Rocha. Há quatro anos que não vou à praia, ainda não consegui. Muita gente foi afetada pela pandemia e tenho que recordar o meu marido. Quero enterrar isto ao pé de uma árvore, no jardim. É uma homenagem que lhe faço.

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My mother had me when she was 15. I never knew my father. Until I was seven, I lived with my grandmother in Portimão. I had two godmothers: Beatriz, who went to Brazil, and Adelina, who lived here. Both always kept an eye on me. Adelina was like a mother to me.

This missal has been with me since I started catechism at seven. I’m Catholic but only go to mass if I feel like doing so. This book has always been with me. When I close my eyes for the last time, it will be thrown out, so I’d rather be the one to bury it. I’m Maria, the thrower-away—I throw away so many things, but not this. It’s a comfort I carry with me. Through every house move, it’s always come along. I felt good reading it; it brought me peace. It was my godmother Adelina who gave it to me. She was very open-minded for her time, a woman who did what she wanted. Her husband once raised his hand to her. She didn’t hesitate; she asked for a divorce. She was strong-willed. That was 60 years ago. It’s what many women needed to do.

When I was 17, I started dating. I got married and was pregnant within a few months. My husband would go off to work and only come home on weekends. I took charge of everything and had to be independent. My second husband was José Alegria. He would say, “My religion is not to hurt anyone.” Alegria was my legs; he helped a lot around the house. My first husband didn’t do anything.

When I was 21, I had surgery and was moved by the volunteer work I saw from the ladies there. It left a mark on me. So, at 56, I started volunteering at ‘Flor Amiga’, an association supporting needy families, and then I went to the hospital. I felt I had to give back what I had received from my godmother. At “Flor Amiga”, I’m the vice president; I manage the food and register many families. We support 80 families, and it runs on donations. There are so many people in need. We work a lot.

I want to bury the missal, a “Flor Amiga” pamphlet, and Alegria’s fishing hat. He loved fishing. The biggest problem during lockdown was not being able to fish. He used to fish at Rocha Beach. It’s been four years since I went to the beach—I still haven’t managed. The pandemic affected many people, and I have to remember my husband. I want to bury these things by a tree in the garden. It’s a tribute to him.

07 ALVARINA
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07 ALVARINA

A tesourinha de costura que eu trago era da minha avó. Eu fazia bonecas de pano e dizia-lhe: “Quando tu morreres eu quero a tua tesourinha.”

Eu vivia com a minha avó. Vim para o Algarve depois do meu pai morrer. Ficava em casa sozinha com 12 anos a tomar conta dos meus sobrinhos. A minha irmã trabalhava. Não me puseram a estudar depois do meu pai morrer, e a vida mudou. Éramos dez irmãos. Fui a única que não fui estudar, tive um grande desgosto. Custou-me muito deixar a escola.

Isto é de uma vizinha minha que morreu de cancro, um livro que me deu e que lhe foi oferecido quando casou. Explica aqui como as mulheres se deviam comportar. Era totalmente diferente de hoje. A mulher era dona de casa, o marido mandava nela, está tudo aqui. Achei interessante porque fiquei a saber como era antigamente. As receitas são boas. Eu faço-as.

Sempre fui independente e muito livre, andava descalça, como se pode ver na fotografia. Era uma moça muito feliz, maria-rapaz. Ganhava à Pipi das Meias Altas. Aconselhei aos meus filhos e netos que lessem a Pipi das Meias Altas e o Tom Sawyer. Eu ia para o campo escorregar nos canais da rega. As pedras arranhavam, tínhamos que arranjar sacas de farinha para poder escorregar. No canal roubava os ovos dos patos e a minha mãe fazia omeletes.

Fui menina selvagem e mulher selvagem. Ia ao cemitério, ia ver tudo. Encaro a morte com realidade, não é má. Quando a minha mãe morreu parecia que estava a rir. Acho que as crianças deviam lidar com isso, com a realidade das coisas. Interessava-me a morte.

Posso enterrar a tesourinha, qualquer dia também bato as botas e isso não interessa a ninguém. A fotografia de família onde estou descalça e a concha, também. A minha avó queria mesmo que eu ficasse com ela, é uma tesoura centenária. Quando morreu eu estava em Portimão, devia ter os meus 18 anos e já estava casada. Esta tesoura representa o melhor tempo da minha vida, em que eu fazia roupa para as minhas bonecas.

Quando vim para o Algarve ia para o Jardim Visconde Bívar com os meus sobrinhos. A tesourinha vai ficar lá, ao pé da estátua do Bívar, mesmo a meio. O meu filho levou-me ao grupo de teatro. Encontrei búzios e ofereci a todos. No espetáculo havia uma parte em que pegava num búzio e punha-me à escuta, levantava-me da cadeira e ia ao público para ouvirem o som do mar. Depois formava uma pirâmide de búzios com os meus colegas, e isso foi uma mudança de vida para mim. Através deste búzio, o teatro permitiu-me ouvir o coração, criar novos movimentos.

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The little sewing scissors I carry belonged to my grandmother. I used to make rag dolls and would tell her, “When you die, I want your little scissors.”

I lived with my grandmother. I came to the Algarve after my father passed away. At 12 years old, I was left alone, caring for my nieces and nephews. My sister was working. After my father died, they didn’t put me in school, and life changed. There were ten of us siblings. I was the only one who didn’t go to school, which was a great sorrow. It hurt a lot to leave school.

This is from a neighbour of mine who died of cancer. She gave me a book she had received when she got married. It explains how women were supposed to behave. It was completely different from today. The woman was a housewife, and the husband ruled over her—it’s all written here. I found it interesting because it helped me understand how things were in the past. The recipes are good. I make them.

I’ve always been independent and very free; I went barefoot, as seen in the photo. I was a thrilled, tomboyish girl. I even beat Pippi Longstocking. I advised my children and grandchildren to read Pippi Longstocking and Tom Sawyer. I used to go to the fields and slide along the irrigation channels. The stones scratched us, so we had to get flour sacks to be able to slide. I used to steal the ducks’ eggs in the channel, and my mother made omelettes.

I was a wild girl and a wild woman. I used to go to the cemetery; I went to see everything. I face death realistically; it’s not bad. When my mother died, it looked like she was smiling. I think children should deal with it, with the reality of things. I was interested in death.

I can bury the little scissors—one day, I’ll die, too, and that won’t matter to anyone. The family photo where I’m barefoot and the shell as well. My grandmother really wanted me to keep it; it’s a hundred-year-old pair of scissors. When she died, I was in Portimão, around 18 years old and already married. These scissors represent the best time when I made clothes for my dolls.

When I came to the Algarve, I used to go to Visconde Bívar Park with my nieces and nephews. The little scissors will stay by the Bívar statue, right in the middle.

My son took me to a theatre group. I found some cowrie shells and gave them to everyone. In the play, there was a part where I’d pick up a cowrie shell, listen to it, stand up from my chair, and go to the audience so they could hear the sound of the sea. Then, I built a pyramid of cowrie shells with my colleagues, which was a life-changing experience for me. Through this cowrie shells, theatre allowed me to listen to my heart and create new movements.

08 FERNANDO
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08 FERNANDO

Os meus avós é que me criaram. Trabalhavam nos caminhos de ferro. Vivíamos numa casa que agora são escombros, na passagem de nível. O meu pai montou uma barbearia em Portimão, a barbearia do Laranjinha, que era a alcunha dele, na rua da Hortinha nº 4. Quando fiz 11 anos ele queria que eu fosse o seguidor do negócio. Mandou fazer um caixote para eu chegar aos clientes e ensaboar a barba. Depois disse: “Agora tens de aprender a fazer barbas. Primeiro começas a fazer na minha cara”.

Eu não queria ser barbeiro. Arranjei esta pata de coelho para dar sorte: “Pode ser que isto mude!”. Os meus avós conseguiram que eu fosse para Lisboa, passados dois anos. O meu pai estava sempre a atrasar-se a mandar o dinheiro para a renda, aquilo incomodava-me e disse ao dono da casa: “Arranje-me um emprego que eu vou estudar à noite.” Aos 15 anos fui para a secção de modas e bordados no jornal O Século.

Passados três meses fui para os serviços administrativos, na secção de assinaturas. Aluguei um quarto, aprendi a cozinhar, comecei a dançar ballet espanhol. A professora tinha o método russo. Ao fim de uns meses queria ir embora, mas não consegui porque ela interessou-se tanto por mim que fiquei até aos 28 anos. Depois uma colega quis levar-me para o folclore, a trabalhar nas casas típicas.

No 25 de Abril era prospector de vendas n’ O Século e dançava à noite no Maxime. Depois tirei o curso para trabalhar como croupier em casinos: era importante a coreografia das mãos e o cálculo mental. Chamaram-me para o casino em Alvor. Quando voltei, o meu pai ainda tinha a barbearia e queria cortar-me o cabelo. Eu ia lá.

Ensino folclore na Universidade Sénior. Danço as províncias todas: O Corridinho do Algarve, o Vira do Minho, a Margarida Moleira da Beira Alta, o Regadinho, o Malhão, os Pauliteiros de Miranda e o Fandango do Ribatejo. O que aprendi lá fora trouxe para Portimão. Através do YouTube é fácil aprender coreografias. Adaptei-as às pessoas mais velhas. Vou procurar os meus sapatos da dança para os enterrar no jardim do TEMPO. Ia lá quando era pequenino, havia um desfile de Carnaval. Tinha tanta satisfação a ver aquilo…

Quando voltei para Portimão senti que se fechava um ciclo. Vivo melhor aqui do que em Lisboa. Somos diferentes em cada sítio onde estamos. Tenho vivido uma vida engraçada. Não sei como vai acabar. Uma vida bem vivida tem de ser atribulada. Agora, corta-me o cabelo um indivíduo que aprendeu com o meu pai.

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It was my grandparents who raised me. They worked for the railways. We lived in a house now just rubble, by the level crossing. My father set up a barbershop in Portimão called “Barbearia do Laranjinha,” his nickname, at 4 Hortinha Street. When I turned 11, he wanted me to take over the business. He made a box so I could reach the clients and lather their beards. Then he said, “Now you have to learn to shave. Start with me.” But I didn’t want to be a barber. I got myself a rabbit’s foot for luck: “Maybe this will change things!”

My grandparents managed to send me to Lisbon two years later. My father was always late in sending money for rent, which bothered me, so I told the landlord, “Find me a job, and I’ll study at night.” At 15, I joined the fashion and embroidery section at “O Século” newspaper. After three months, I moved to the administrative services department of the subscriptions department. I rented a room, learned to cook, and started Spanish ballet dancing. My teacher used the Russian method. After a few months, I wanted to leave, but I couldn’t because she was so interested in my progress that I stayed until I was 28. Later, a colleague tried to take me into folk dancing, performing in traditional houses.

On April 25 (during the revolution), I was a sales prospector at “O Século” and danced at night at Maxime. Later, I took a course to work as a croupier in casinos, where hand choreography and mental math were essential. They called me to work at the Alvor casino. When I came back, my father still had the barber shop and wanted to cut my hair. I used to go there.

Now, I teach folk dancing at the Senior University. I dance from all the regions: “Corridinho” from Algarve, “Vira” from Minho, “Margarida Moleira” from Beira Alta, “Regadinho”, “Malhão”, “Pauliteiros de Miranda”, and “Fandango” from Ribatejo. What I learned abroad, I brought back to Portimão. With YouTube, it’s easy to learn new choreographies. I adapted them for older people.

I’m planning to bury my dancing shoes in the TEMPO garden. I used to go there when I was little; there was a carnival parade. I was so happy to see it…

When I came back to Portimão, I felt a cycle closing. I live better here than in Lisbon. We’re different in each place we are. I’ve had an exciting life. I don’t know how it will end. A well-lived life has to be eventful. Now, someone who learned from my father cuts my hair.

09 FILIPE
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09 FILIPE

Um cabo jack faz a conexão entre uma fonte sonora (um instrumento) e um altifalante (um amplificador, uma coluna) … enfim, digamos que conecta uma ‘voz’ e que lhe dá volume sonoro.

Sou de Portalegre e estou cá há 15 anos. Havia uma crise e os artistas estavam sem trabalho. Eu não era um grande músico, estava a começar. Mandei currículos e chamaram-me para cá. De repente havia trabalho. Era mais entretenimento do que trabalho artístico, mas para quem gosta de tocar… E hoje dou aulas na Escola da Bemposta.

Antes de chegar ao Algarve vivia dentro de uma realidade geracional que nos formata para o trabalho, o curso, a carreira. Aqui aprendi que há outros caminhos. Sou saxofonista mas comecei na escola clássica. Comecei a tocar numa filarmónica. Há repertório clássico muito bonito para saxofone. Fiz um pouco de tudo. Quando estava com pessoas do jazz era o tipo do clássico, com malta do clássico eu era do jazz, e percebi que existe um espaço entre um e outro, há toda uma realidade musical entre eles, um espaço de improvisação livre. Fui por aí. Agora tenho uma licenciatura no jazz e no clássico.

A música é incontornável na minha relação com Portimão. Havia muito bons músicos mas não tocavam jazz regularmente. Então criei, com outras pessoas, uma jam session na rua Arco Maravilhas, no bar Marginália, onde todas as semanas havia música ao vivo. Quero enterrar este cabo ao pé do arco, nessa rua. Houve dois momentos em que, por iniciativas diferentes, aconteceram ali jam sessions e veio gente nova ao bar. Havia público, estava cheio. E a escola onde eu trabalho tinha aberto um curso de jazz. Falei com um amigo, o Bruno Vítor e o Davide Fournier, para fazermos as jams, que começaram a acontecer ali de 15 em 15 dias, durante bastantes anos. Depois, quem continuou as jams foram os antigos alunos.

O que fazes em lugares que não são grandes cidades é significativo, tem muito impacto, é real e muda as dinâmicas. Quem vive na cidade é quem a constrói. Acho que a dimensão humana de Portimão, os encontros, até foram mais fortes que a música, para mim. O cabo jack também simboliza isso.

Desde que o bar Marginália fechou portas ninguém pegou nele, está a cair aos bocados. Não deixa de ser curioso que aqui, onde muitas vozes e músicas se ouviram, haja agora silêncio e talvez por isso seja importante fazer a ligação entre esses tempos. Pudesse este arco ser um portal aberto para o futuro. Se as paredes falassem? Imagina se cantassem…

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A jack cable connects a sound source (an instrument) to a speaker (an amplifier, a speaker) … let’s say it connects a “voice” and gives it volume.

I’m from Portalegre, and I’ve been here for 15 years. There was a crisis, and artists were out of work. I wasn’t an accomplished musician; I was starting out. I sent out résumés, and they called me here. Suddenly, there was work—not so much artistic but more entertainment work, but if you love to play… Now I teach at Bemposta School.

Before coming to the Algarve, I was shaped by a generational mindset that sets you up for work, a degree, and a career path. Here, I learned there are other ways to live. I’m a saxophonist, though I started in classical music, playing in a philharmonic band. There’s a lot of beautiful classical repertoire for saxophone. I dabbled in a bit of everything. When I was with jazz musicians, I was the classical guy; with classical musicians, I was the jazz guy. I realised there was a space between them—a whole musical reality, a place for free improvisation. That’s the path I took. Now, I have a degree in both jazz and classical music.

Music is inseparable from my connection to Portimão. There were excellent musicians here, but they didn’t play jazz regularly. So, with some others, I started a weekly jam session on Arco Maravilhas Street at Marginália bar, where we had live music every week. I want to bury this cable by the arch on that street. There were two different moments when jam sessions took place, bringing new people into the bar. It was packed. And the school where I work had just opened a jazz course. I spoke with friends Bruno Vítor and Davide Fournier, and we decided to run the jams, which went on every other week for many years. Later, former students kept them going.

What you create in places that aren’t big cities is meaningful—it has an impact, is real, and changes dynamics. The people who live in the city are the ones who build it. I think the human connections I found in Portimão, these encounters, meant even more to me than the music itself. The jack cable symbolises that, too.

No one has touched it since the Marginália bar closed; it’s falling apart. Strangely, there’s silence now in this place where so many voices and songs once filled the air. Maybe that’s why it feels essential to reconnect those times. What if this arch were an open portal to the future? Imagine if the walls could talk. What if they could sing?

10 Rodrigo
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10 RODRIGO

Esta caixa guarda memórias. É uma amostra pequena de tudo o que tenho. Isto é um colar que fiz em Alcalar, onde nasceu Portimão.

Isto era o porta-chaves da minha avó. Chamava-se Lena. Fazia Quica Vegetal: beringela panada. Eu não sabia o que era e chamava-lhe uma panqueca vegetal, mas não conseguia dizer bem.

Este é outro porta-chaves: um Popit. Ofereci aos meus amigos quando fiz anos e guardei um para mim. Relaxa-me.

Isto é de quando fui ao Estádio da Luz com a minha turma, na primeira visita depois do confinamento. Estava vazio e vi a águia.

Isto é uma estrela de bom comportamento que a minha professora me deu.

Este papel tem a história de três idiotas. Está enrugada porque escrevi mal, por isso amachuquei-a e queria deitá-la ao lixo, mas em vez disso guardei aqui.

Nesse saco havia berlindes.

Esta pulseira foi a Matilde que me deu na escola. Eu ajudava-a a fazer pulseiras e ela deu-me uma. No início ela dizia que era só para as meninas, mas eu insisti.

Isto é um clip, para juntar páginas. Foi um amigo, o Miguel, que me deu.

Aquela moeda encontrei no chão.

Esta foi uma das peças do meu primeiro beyblade. Perdi as outras.

Isto era uma bola de natal que caiu e as letras Merry Christmas espalharam-se pelo chão. Guardei-as, mas perdi-as na escola. Só tenho o “R”.

Isso é plasticina. Ofereceram-me quando fui a uma hamburgueria. Sobrou e trouxe para casa.

Isto foi quando a minha mãe estava a cozinhar massa. Tirei uma do pacote. Queria comer crua. Percebi que não dá para comer, é muito dura.

Isso era um fio que um amigo meu, o João Pedro, encontrou no chão. Guardei para, no futuro, me lembrar dele.

Isto são trabalhos de casa que eu fazia com a minha mãe no confinamento, as páginas 57 e 58. Mas não ficou nenhuma por fazer!

Isso é um autocolante que se rasgou de uma coleção completa, de vegetais e legumes.

Isso são cartas dos Pokémon. Não tenho a coleção toda, é infinita. As repetidas troco com os meus colegas. Trocava uma valiosa por duas menos valiosas. Tinha um amigo que queria fazer a coleção das cartas fofas. Ele dava-me as fortes, eu dava-lhe as fofas.

O Gucci é um urso que viaja com a nossa turma. Brincamos com ele e é famoso para outras turmas. É importante para nós.

Isto é uma pedra. Apanhava muitas e queria trazer todas para casa. Gosto de colecionar.

Vou enterrar esta caixa no Parque da Juventude, onde estão as tartarugas e os patos, porque gosto de atirar comida para lá. Dava-lhes bolachas da escola.

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This box holds memories. It’s a small sample of everything I have. This is a necklace I made in Alcalar, where Portimão was born.

This was my grandmother’s keychain. Her name was Lena. She used to make “Quica Vegetal”: breaded eggplant. I didn’t know what it was and called it a “vegetable pancake,” but I couldn’t say it correctly.

This is another keychain: a Popit. I gave these to my friends on my birthday and kept one for myself. It relaxes me.

This is from when I went to Estádio da Luz with my class, our first outing after the lockdown. It was empty, and I saw the eagle.

This is a “good behaviour” star my teacher gave me.

This crumpled paper has the story of three idiots. I made mistakes while writing it, so I scrunched it up, wanting to throw it away, but instead, I kept it here.

There were marbles in that bag.

Matilde gave me this bracelet at school. I used to help her make bracelets, so she gave me one. At first, she said they were only for girls, but I insisted.

This is a paper clip for holding pages together. A friend, Miguel, gave it to me.

I found that coin on the ground.

This was one of the pieces from my first Beyblade. I lost the others.

This was a Christmas ball that broke, and the “Merry Christmas” letters scattered on the floor. I saved them but lost them at school. I only have the “R” left.

That’s some modelling clay. They gave it to me when I went to a burger place. There was some left, so I brought it home.

This was from when my mom was cooking pasta. I took one from the pack, wanting to eat it raw, but realised it was too hard.

That’s a string my friend João Pedro found on the ground. I saved it to remember him in the future.

I did these homework pages with my mom, pages 57 and 58, during lockdown. But none were left unfinished!

That’s a torn sticker from a complete collection of vegetables.

Those are Pokémon cards. I don’t have the whole collection—it’s endless. I trade duplicates with my classmates. I used to trade a valuable one for two less valuable ones. I had a friend who wanted to collect cute cards. He gave me the strong ones; I gave him the cute ones.

Gucci is a bear who travels with our class. We play with him, and he’s famous

in other classes. He’s vital to us.

This is a stone. I used to pick up a lot of rocks, wanting to bring them all home. I love collecting things.

I will bury this box in Parque da Juventude, where the turtles and ducks are, because I like throwing food at them. I used to give them cookies from school.

11 FERNANDA
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11 FERNANDA

Fiz voluntariado durante 20 anos no Hospital de Portimão e foi uma das coisas que mais gostei, mas quando chegava a casa punha música e dançava, para não pensar. “Temos que aceitar as coisas difíceis, para podermos aceitar as ainda mais difíceis”. Foi uma frase de um doente com quem eu jogava às cartas. Ele sabia que tinha pouco tempo de vida.

Dancei em casa desde pequena. O meu pai tocava acordeão. Eu ia buscar bocados de cortinados e punha-me a dançar com os panos. Um dia o meu pai disse: “Pareces a Isadora Duncan”. Eu não conhecia e ele contou-me a história. Só quando estive na Alemanha é que vi o filme.

Fui para a Alemanha com 17 anos. Já namorava o meu marido, mas fui sozinha. Levei a morada dele numa caixa de fósforos, que me deu na paragem da camioneta. “Pelo menos escreve-me quando chegares à Alemanha”, eu respondi: “Nunca! Vou arranjar um alemão!”. Deu-me a morada, mas não liguei. Quando estava na Alemanha é que senti a falta dele.

Os pais decidiam a vida dos filhos. Os meus mandaram-me para a Alemanha, como eu era rebelde. Fui com o sonho de estudar numa escola de dança. Não me deixaram. Custa-me dizer isto. Tinha algumas disciplinas num colégio e trabalhava numa fábrica, soldava pilhas. Havia mulheres a trabalhar em linha, cada uma a soldar, cortar, dobrar, carimbar. Passados três meses o meu marido, namorado na altura, mandou a primeira carta de amor que recebi. Voltei com algum dinheiro e casei-me.

Procurei aulas de dança em Portimão. Queria aprender, mas vi que não era aquela coisa livre. Ainda aprendi dança contemporânea, já com filhos. Para a minha mãe aquilo ficava mal. O meu marido também não gostava. Mas os cães ladram e a caravana passa, era o que dizia o meu pai. Então dançava em casa. Quando a minha filha tinha 16 anos e não podia entrar nas discotecas, eu ia com ela e aproveitava para dançar que nem uma louca. Trabalhei, cuidei dos filhos, fiz voluntariado. Na Universidade Sénior voltei a dançar.

Antes da pandemia um artista, Luís Stoffel, veio aqui fazer um trabalho. Ele disse: “Fernanda, vê o filme da Isadora Duncan, quero que dances como ela”. Eu respondi: “Não sei, vou tentar” e comecei a chorar porque me lembrei do meu pai. Não sei dançar, mas dancei.

Sou conhecida por Maria Trapeira, sempre com panos. Gosto de ser eu própria a dançar, a alegria sai do meu corpo. Os meus filhos dizem que sou muito escandalosa! Sempre fui muito livre. Tomava cafés em bares para homens, andava de bicicleta, vestia-me como uma hippie e dançava descalça. Vou enterrar um lenço com que danço, no lugar do jardim onde levava os meus netos quando eram bebés.

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I volunteered for 20 years at the Portimão Hospital, and it was one of the things I liked the most. But when I got home, I used to play music and dance, so I wouldn’t think. “We have to accept the hard things so we can accept the even harder things.” That was something a patient told me once when we played cards. He knew he didn’t have much time left.

I’ve danced at home since I was young. My father played the accordion, and I’d grab pieces of curtains and dance with the fabric. One day, he said, “You look like Isadora Duncan.” I didn’t know who she was, so he told me her story. I saw her film when I was in Germany. I went there alone at 17, even though I was dating my husband by then. He gave me his address on a matchbox at the bus stop and said, “At least write to me when you get to Germany.” I replied, “Never! I’m going to find a German guy!” He gave me his address anyway, but I didn’t use it. It was only in Germany that I realised I missed him.

Parents decided their kids’ lives back then, and mine sent me to Germany because I was rebellious. I went with dreams of studying at a dance school, but they didn’t let me. It’s hard to say this. I took some courses at a school and worked in a factory, welding batteries. The women on the line each had a role: welding, cutting, folding, stamping. After three months, my boyfriend—now my husband—sent me my first love letter. I came back with some money, and we got married.

In Portimão, I looked for dance classes because I wanted to learn, but I saw it wasn’t the same free expression I sought. I did learn a bit of contemporary dance, even with kids already. My mother didn’t approve, and my husband wasn’t a fan either. But my father used to say, “The dogs bark, but the cara­van moves on.” So, I danced at home. When my daughter was 16 and couldn’t go to nightclubs, I went with her and danced like crazy. I worked, raised my kids, and volunteered. Then, at the Senior University, I started dancing again.

Before the pandemic, an artist named Luís Stoffel came here to work on a project. He told me, “Fernanda, watch the Isadora Duncan movie—I want you to dance like her.” I replied, “I don’t know if I can, but I’ll try,” and then I start­ed crying, remembering my father. I don’t know how to dance, but I danced.

People call me “Maria Trapeira”; I always dance with bits of fabric. I love dancing freely, happiness flows from my body. My kids say I’m outrageous! I’ve always been very free. I drank coffee in bars meant for men, rode my bike, dressed like a hippie, and danced barefoot. I will bury a scarf I dance within the garden where I used to take my grandkids when they were babies.

12 LUCRÉCIA
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12 LUCRÉCIA

A minha mãe tinha muita confiança em mim. Chamava-se Maria e morreu com 90 anos, em 2008. Tive uma grande relação com ela, em todas as idades. Falá­vamos de tudo. Naquela altura não era muito habitual ter um diálogo tão aberto com as mães. Contava à minha mãe com quem tinha dançado. Adoro dançar!

Quando tinha 16 anos, nos três dias de Carnaval dancei sempre com o mesmo rapaz. No fim de um baile ele ofereceu-me o lenço que trazia ao pescoço. Não foi namorado, nem nada. Nunca mais o vi. Estava vestido com um chapéu de coco, um fato preto com abas de grilo e este lencinho ao pescoço. Depois ofereceu-mo, tenho-o guardado, mas às vezes ainda o ponho, é importante. Durante muito tempo tinha o cheiro dele, o perfume. Isto foi há mais de 40 anos e o meu marido sabe. Depois de casada fui poucas vezes aos bailes. Dançava muito no Boa Esperança.

A minha mãe cozinhava para casamentos. Foi ela que cozinhou para o meu. Este objeto é um cortador de massa que lhe pertencia. A roda cortava a massa para fazer pastéis, aqueles de batata-doce, e patanilhas. Ela trabalhava fora e quem fazia a comida em casa era eu.

Trabalhei como controladora, telefonista e recepcionista no Hotel Júpiter, na Praia da Rocha. Fui subindo no trabalho. O meu marido trabalhava na cozinha. Eu tinha autonomia financeira, os tempos estavam a mudar. Primeiro trabalhei numa tabacaria-papelaria em Portimão, chamada Valverde, que ficava na rua das lojas. Depois fui para o hotel. Os empregos nos hotéis eram mais bem pagos, era mais chique e não se trabalhava debaixo do Sol. Alguns homens que trabalhavam no hotel tentavam aproximar-se de mim e, claro, das turistas. Os companheiros do meu marido diziam que ele não devia namorar comigo porque era cozinheiro, o seu trabalho estava abaixo do meu. Tenho uma antiga colher de pau que era dele.

Depois trabalhámos juntos num restaurante em Portimão, durante 20 anos. Éramos os donos e fazíamos comida regional e grelhados: cozido, chanfana, frango. Eu fazia contas, servia à mesa. Ainda hoje, em casa, é o meu marido que cozinha. Os restaurantes mudaram para agradar aos turistas, o tipo de comida e a quantidade mudou. É mais elaborada, com aqueles efeitos todos, e depois de comer ficamos com fome.

O meu marido era cozinheiro, mas não foi por isso que me apaixonei por ele! Não foi pelo estômago, foi pela vista. Também tenho este cortador de batatas que o meu marido usava, para cozinhar batatas pequenas. Também gostava de o enterrar. Lembro-me da primeira vez que o vi, tinha calças bege e uma camisa. Uma vez disse à minha mãe: “Vi um menino tão bonito, tinha o cabelo loiro, olhos verdes, parecia estrangeiro.” Ao fim de uns tempos recebi uma carta dele a pedir namoro. Ainda hoje tenho essas cartas.

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My mother, Maria, had a lot of confidence in me. She passed away at 90 in 2008. I had a strong relationship with her at every age. We talked about everything. At that time, having such an open dialogue with one’s mother was uncommon. I would tell her who I danced with. I love dancing!

When I was 16, I danced with the same boy during the three days of Carnival. At the end of one dance, he gave me the scarf he wore around his neck. He wasn’t a boyfriend or anything. I never saw him again. He wore a bowler hat, a black suit with a tailed coat, and this little scarf around his neck. Then he gave it to me—I’ve kept it, and sometimes I still wear it; it’s important. For a long time, it held his scent, his perfume. This was over 40 years ago, and my husband knows. After I got married, I rarely went to dances. I used to dance a lot at Boa Esperança.

My mother cooked for weddings. She was the one who cooked for my own. This object is a pastry cutter that belonged to her. The wheel was used to cut the dough to make pastries, like sweet potato pastries and “patanilhas.” She worked outside, and I was the one who cooked at home.

I worked as a controller, a switchboard operator, and a receptionist at the Jupiter Hotel in Rocha Beach. I moved up in my job. My husband worked in the kitchen. I had financial independence; times were changing. I first worked in a tobacco and stationery shop in Portimão called Valverde, which was on the shopping street. Then I moved to the hotel. Hotel jobs paid better, were more prestigious, and we didn’t work under the sun. Some men who worked at the hotel tried to approach me and, of course, the tourists. My husband’s colleagues told him he shouldn’t date me because he was a cook, and his work was considered inferior. I have an old wooden spoon that belonged to him.

We later worked together in a restaurant in Portimão for 20 years. We were the owners and served regional and grilled food: stews, “chanfana”, chicken. I handled the accounts and served tables. Even today, at home, it’s my husband who cooks. Restaurants have changed to please tourists; the type of food and the portions have changed. It’s more elaborate, with all those effects, and we’re still hungry after eating.

My husband was a cook, but that’s not why I fell in love with him! It wasn’t through my stomach; it was through my eyes. I also have this potato cutter my husband used to cook small potatoes. I would also like to bury it. I remember seeing him wearing beige pants and a shirt the first time I saw him. One day, I told my mother: “I saw such a handsome boy with blond hair and green eyes; he looked foreign.” After a while, I received a letter from him asking me to be his girlfriend. I still have those letters today.

13 MARIA DO MAR
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13 MARIA DO MAR

Vou enterrar um boneco do rato Mickey. Foi dado pelo meu avô à minha mãe, da minha mãe foi para o meu irmão e para mim. Tenho 9 anos, ele tem 11. Não conheci o meu avô, queria que isto fosse guardado. Sempre adorei o mar, está no meu nome. O meu avô disse à minha mãe que, se tivesse uma menina, devia ter o nome do mar. Fui fazer férias desportivas, experimentei vela e gostei muito. Pensavam que os rapazes eram melhores, como no futebol, mas uma menina do nosso clube ficou em segundo no Mundial. As raparigas estão cada vez mais fortes. Eu não vou ao Europeu nem ao Mundial. Há agora um Nacional na Madeira, vou faltar uma semana às aulas. Na escola têm de aceitar! A minha professora diz: “Vais perder matéria!”, mas reparou que eu consigo recuperar facilmente.

Quero ser treinadora de vela, mas não quero deixar os estudos. Antes tinha muitos sonhos, passei por alturas estranhas. Queria ser educadora de crianças, depois cabeleireira, professora. Tenho uma amiga que vê a escola e diz: “Olha aqui o Inferno”, mas eu acho que a escola é interessante. Em Portimão há muitos dias de vento no Inverno.

Gosto de navegar e ir para longe quando está médio ou pouco vento, mas quando está muito… como sou levezinha o vento e as ondas levam-me, quase não tenho de fazer nada. No mar, quando a água fica escura quer dizer que vem um vento mais forte do que o constante. Tenho de estar preparada para pranchar e inclino-me para fora do barco. Cada dia levo um raio de nervosismo e quando acabo as regatas tenho um sol de alegria. Porto, Faro, Lisboa, Costa Nova, Aveiro, Lagos: vou velejar a muitos sítios. No Verão vou muitas vezes a Espanha. Todos os desportos têm dificuldades. O mais importante é a concentração, a paciência. Toda a gente tem capacidade. Eu nunca quis desistir e acho que nunca vou querer. Se tivesse de convencer uma criança a fazer vela, primeiro perguntava se ela gostava do mar. Acho que uma pessoa que não gosta do mar é uma pessoa estranha. Eu quero enterrar o Mickey perto do mar, é mesmo isso. Perto do farol, onde há mais ondas. Podia também fazer um nó numa corda, o nó direito. Posso unir as mãos do Mickey com um nó da vela. Quando era pequena não tinha esta ligação com o mar, como tenho agora.

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I’m going to bury a Mickey Mouse toy. It was given by my grandfather to my mother, and from my mother, it went to my brother and me. I’m 9 years old; he’s 11. I never met my grandfather, so I want this to be kept safe.

I’ve always loved the sea—it’s even in my name. My grandfather told my mom she should give her a sea-inspired name if she had a girl. I went to a sports camp, tried sailing, and enjoyed it. Some people think boys are better, like in soccer, but a girl from our club actually placed second in the World Champi­onships. Girls are getting stronger all the time.

I’m not attending the European or World Championships, but a Nationals in Madeira is coming. I’ll miss a week of school, and they’ll have to deal with it! My teacher said, “You’re going to miss material!” but she also noticed I could catch up quickly.

I want to be a sailing coach, but I also want to continue my studies. I’ve had many different dreams, and I’ve gone through some confusing times. I wanted to be a childcare worker, hairdresser, and teacher. One of my friends looks at school and says, “This is hell,” but I think school is interesting.

In Portimão, there are lots of windy days in winter. I like to sail out far when the wind is mild, but when it’s really strong… I’m light, so the wind and waves carry me along without much effort. On the water, a stronger gust is coming when it gets dark, so I have to be ready to hike out. Every day, I carry a spark of nerves, and when I finish the races, I’m filled with a sunbeam of joy. Porto, Faro, Lisbon, Costa Nova, Aveiro, Lagos—I’ve sailed in many places, and in the summer, I often go to Spain.

All sports have challenges, and focus and patience are the most important. Everyone has the ability. I’ve never wanted to quit, and I think I never will. If I had to convince a kid to try sailing, I’d first ask if they like the sea. I think someone who doesn’t like the sea is strange.

I want to bury Mickey near the sea, for sure. Close to the lighthouse, where the waves are the biggest. I could tie his hands with a simple sailor’s reef knot to make a small connection. When I was younger, I didn’t have this bond with the sea like I do now.

14 AGOSTINHO
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14 AGOSTINHO

Sou o Agostinho Coelho dos Santos, nascido em 1955, aluno da Escola Primária da Praia da Rocha e funcionário da Câmara Municipal Portimão até 31/07/2021.

Decidi enterrar uma bola de Futebol de Salão, hoje designado por Futsal, modalidade que se jogava num campo com as medidas de 20X40 metros, cujas características principais eram que a bola não podia levantar mais do que 1 metro de altura e os golos só eram validados com execução fora da área de 6 metros do guarda-redes. O Futsal é mais competitivo, tem mais contacto, mais próximo do futebol normal. O Futebol de Salão era mais técnico e difícil.

Após o 25 Abril de 1974 começámos a organizar torneios de Futebol de Salão, que ficaram famosos. No dia 24 de junho de 1983, então Dia da Cidade, foi inaugurado o Polidesportivo Municipal da Quinta do Amparo. Aí organizámos, nos anos que se seguiram, os maiores torneios de Futebol de Salão, com a participação de cerca 150 equipas e 1500 atletas.

A minha mulher sofreu com isso porque quando casámos eu tive que organizar o torneio durante a lua-de-mel. Os jogos iam de junho a setembro. Eu dedicava os verões à organização, a semana toda com sábados e domingos. Havia quatro a cinco jogos por dia, a partir das 18h até à meia-noite, com muita gente a ver. Nós trabalhávamos e depois íamos jogar. Quando pus um pacemaker, há um ano, o médico disse: “Esqueça o futebol”. E a minha mulher, muito satisfeita, pediu: “Na televisão também, doutor!”

Os torneios eram aqui no Algarve, mas a nossa equipa disputou torneios a nível nacional, e intermunicipais fomos quatro vezes campeões. A primeira vez que fui à Madeira foi com a equipa. A minha mulher também foi. Corremos o país todo. Tenho recortes de jornais.

Havia muitas equipas: a da Câmara, Paga Pouco, Glória ou Morte, Boa Esperança. Havia empresas de construção que patrocinavam equipas. Houve uma sapataria famosa, a Carla & Barone, e tinha uma equipa. O nome do dono era Carlos Barão. Também havia equipas de miúdos.

Esta é uma fotografia da nossa equipa em 99, com os cartões dos jogadores. As forças de segurança, a Guarda Fiscal, organizavam este torneio. Havia equipas da Polícia Judiciária, Polícia Marítima, tudo!

Enterro uma bola de Futebol de Salão nas imediações do referido Polidesportivo Municipal da Quinta do Amparo. Vejo o Polidesportivo ao abandono e a degradar-se, pelo que os nossos representantes autárquicos deveriam tratar da sua recuperação e colocar este espaço ao serviço dos cidadãos.

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I am Agostinho Coelho dos Santos, born in 1955, a former Escola Primária da Praia da Rocha student and an employee of the Portimão City Council until July 31, 2021.

I’ve chosen to bury a Futsal ball, once called “Futebol de Salão”. We used to play this game on a 20×40-meter court, with unique rules: the ball couldn’t go more than one meter high, and goals were only valid if made from outside the six-meter goal area. Today, futsal is more competitive, with closer contact, and more like traditional football. But “Futebol de Salão” was more technical and more challenging.

After April 25 1974, we began organising “Futebol de Salão” tournaments that became quite famous. On June 24, 1983, which was City Day, the Quinta do Amparo Municipal Sports Complex was inaugurated. In the following years, we held major “Futebol de Salão” tournaments, with around 150 teams and 1,500 athletes participating.

My wife wasn’t thrilled about it—right after we got married, I organised a tournament during our honeymoon! The games ran from June to September, with matches almost every evening from 6 pm until midnight and a big crowd watching. We worked and then went straight to play. Last year, after I got a pacemaker, my doctor advised, “Forget about football.” My wife happily added, “And that goes for football on TV too, doctor!”

Our team mainly played tournaments in the Algarve, but we also participated in national competitions. We won four inter-municipal championships. My first trip to Madeira was with the team, and my wife also came along. We travelled all over the country. I have newspaper clippings.

There were many teams: the Municipality team, Paga Pouco, Glória ou Morte, and Boa Esperança. Construction companies sponsored teams. A famous shoe store, Carla & Barone, had a team. The owner’s name was Carlos Barão. There were also youth teams.

This is a photo of our team in 99, with the player’s cards. The security forces, the Fiscal Guard, organised this tournament. There were teams from the Judi­cial Police, Maritime Police, everything!

I will bury this “Futebol de Salão” ball near the Quinta do Amparo Municipal Sports Complex. Seeing it now, abandoned and deteriorating, I hope our local representatives will restore this space and make it a valuable place for the community again.

15 RITA
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15 RITA

Chamava-se Pedro Afonso e era meu primo, tinha 18 anos quando morreu. Nasceu no dia da cidade, a 11 de Dezembro de 2000. Jogava futebol, era o número 3. Durante os fins de semana vinha aqui jogar e toda a família ia ver. Tenho este astronauta para colocar na árvore de Natal, que arranjámos depois de ele morrer. Quando fez 16 anos escrevi-lhe uma dedicatória: és um planeta onde só o melhor acontece. Recordámos muito essa frase.

Ele andava por toda a cidade. A escola era no centro, na Teixeira Gomes, onde estavam os seus amigos. Há aí uma zona de jardim. Gostava de enterrar este astronauta e ainda não falei com o resto da família, mas eles confiam em mim.

Trabalho numa associação da cidade, a Teia de Impulsos. Fazemos projetos culturais e sociais com jovens com deficiência, eu trabalho na parte da comunicação. Levamos a vida de outra forma. O que acabo por fazer na comunicação é contar as histórias. Estas tragédias que acontecem tornam-nos mais humanos, e por isso sinto que conto melhor as histórias dos outros.

A ideia de quem criou a associação foi que a teia unisse vários impulsos sociais, culturais, desportivos, para ligar e alimentar a cidade. Temos um campo de férias no Verão só para jovens com diversidade funcional, física e psicológica. Dura mais de um mês e recebemos cerca de 20 jovens, muito diferentes e de várias idades. Fazem canoagem, vão à praia, cozinham. Estão connosco o dia todo. O nosso sonho é que isso aconteça em todo o país.

Temos o Lota Coolmarket, um mercado de artesanato com uma vertente ambiental, roupa reciclada, queijos, licores, concertos. São quatro dias no final de julho. Temos também a Rota das Tapas, já com 11 anos. Temos uma equipa de vela adaptada, para adultos com deficiência. Em 2023 ficaram em terceiro lugar do mundo. Organizámos o campeonato do mundo na marina de Portimão.

Quando o Afonso morreu foi um choque para a família, mas somos muito unidos e o que queremos é recordá-lo, falar dele e criar memórias felizes. Não queremos andar de preto. Não condenamos quem o faz, cada pessoa tem a sua forma de luto, mas somos muito positivos. Ele era uma pessoa tão alegre, com tantos sonhos interrompidos, que não podemos deixar de percorrer os nossos, queremos ter mais sonhos e concretizar coisas também em memória dele, para que faça sentido. Por nós e por ele. Muitas vezes, em pequenino, danado, fazia uma mochila e dizia que ia sair de casa. Mas “voltava” sempre.

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His name was Pedro Afonso, my cousin, and he was just 18 when he passed away. He was born on City Day, December 11, 2000. He played football and wore the number 3. Every weekend, he would come here to play, and the whole family would come to watch. I have this astronaut to hang on the Christmas tree, which we put up after he died. When he turned 16, I wrote him a dedication: “You are a planet where only the best things happen.” We often remember that phrase.

He loved to roam around the city. His school was in the centre at Teixeira Gomes, where all his friends were. There’s a garden area nearby. I want to bury this astronaut. Although I haven’t talked to the rest of the family yet, they trust me.

I work for a local association called “Teia de Impulsos.” We run cultural and social projects for young people with disabilities, focusing on communication. My role involves sharing stories. These tragedies make us more human, and because of them, I tell the stories of others more effectively.

The idea behind creating the association was to weave various social, cultural, and sports initiatives to connect and enrich our city. We have a summer camp exclusively for young people with functional diversity, both physical and psy­chological. It lasts over a month, and we welcome about 20 young people of various ages and backgrounds. They do activities like kayaking, going to the beach, and cooking. They spend the whole day with us. Our dream is to see similar initiatives across the country.

We also organise the “Lota Coolmarket”, an artisan market with an environ­mental focus featuring recycled clothing, cheeses, liqueurs, and concerts. This event runs for four days at the end of July. We also have the “Rota das Tapas”, which has been going for 11 years. Additionally, we have an adapted sailing team for adults with disabilities, which won third place in the world in 2023. We organised the world championship at the marina in Portimão.

When Afonso died, it was a shock for our family, but we are very close-knit, and we want to remember him, talk about him, and create happy memories. We don’t want to wear black. We don’t judge those who do; everyone has their own way of grieving, but we choose to be positive. He was so cheerful, with so many dreams cut short, and we can’t help but pursue our dreams in his memory. It’s a way to make it meaningful—for us and him. Many times, when he was tiny and mischievous, he would pack a backpack and say he was leaving home. But he always, ‘came back.’

16 ANA PATRÍCIA
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16 ANA PATRÍCIA

Estes dois copos, um de Macieira e outro de aguardente ou medronho, transportam-me até à “tasca” ou taberna que, durante anos, os meus avós paternos exploraram em Portimão.

Esta taberna, palavra que pela sua etimologia significa “abrigo”, foi um dos espaços onde cresci e onde sempre me conduzem as minhas memórias de infância, porque realmente me deu muitas vezes guarida, da mesma forma que constituiu um refúgio e sentido de coletivo a quem, durante anos, fez parte da sua clientela regular.

Os meus avós, António José Ramos e Maria de Lourdes, abriram portas da Casa Ramos, na rua D. Carlos I, no início dos anos de 1970. A rua da “tasca” correspondia a uma zona de casario baixo, com edifícios mais imponentes, onde havia também uma cooperativa de leite, uma outra taberna, a casa e fábrica de cortiça do industrial Luís Bordas y Marimon, ou a fábrica de conservas “Liberdade”.

A “tasca” repartia-se em diferentes espaços. Ao passar a porta, um primeiro balcão com uma pequena montra para exposição de produtos como o medronho ou garrafas de vinho Gramujeira. Em cima do balcão, os ovos cozidos com casca, em sal grosso. Aqui era onde os homens, pescadores, operários, mecânicos, o carteiro, o endireita ossos, o taxista, entre outros, paravam, desde manhã cedo, apressados pelo trabalho ou para relaxar no final do dia, para uma aguardente, um copo de vinho, uma macieira e dois dedos de conversa.

Ultrapassando este espaço, umas portas tipo “saloon” davam lugar a um outro compartimento onde se serviam os almoços e jantares. Inicialmente, compunha-se de pequenas salas onde as mulheres e os homens das fábricas de conservas vinham almoçar. Traziam a sua refeição e compravam apenas a bebida. Com o passar do tempo, as divisórias desapareceram e este transformou-se num espaço único, com balcão corrido onde se serviam as bifanas da minha avó, e mesas para os almoços e jantares. O arroz à valenciana, a dobrada com feijão branco, o cozido, o grão com mão de vaca, os pipis, as lulas cheias, a feijoada, as sardinhas assadas, a moreia que era colocada a secar no quintal e depois frita, entre muitas outras iguarias.

A tasca simbolizava um pequeno bairro cuja vizinhança se foi alterando. As fábricas fecharam, os pescadores tornaram-se menos, surgiu o pessoal das oficinas, do comércio e serviços. Já no início dos anos 90 era procurada por muitos turistas portugueses e estrangeiros.

A família encerrou as suas portas no final da primeira década de 2000. Posteriormente foi ainda um bar de música, mas o espaço encontra-se encerrado há já vários anos.

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These two glasses, one for “Macieira” and the other for brandy or medronho, transport me back to the “Tasca”, or tavern my paternal grandparents ran in Portimão for many years.

This tavern, a word that etymologically means “shelter,” was one of the spaces where I grew up and where my childhood memories always led me, as it often provided refuge and a sense of community for those who were regular customers.

My grandparents, António José Ramos and Maria de Lourdes, opened the doors of “Casa Ramos” on D. Carlos I Street in the early 1970s. The street where the “Tasca” was located featured low housing with more imposing buildings, a dairy cooperative, another tavern, the cork house and factory of industrialist Luís Bordas y Marimon, and the “Liberdade” canning factory.

The “Tasca” was divided into different areas. Upon entering, there was a first counter with a small showcase displaying products like medronho or bottles of Gramujeira wine. On the counter were boiled eggs sprinkled with coarse salt in their shells. This was where men—fishermen, workers, mechanics, mail carriers, the bone setter, the taxi driver, among others—would stop early in the morning, hurried by work or to relax at the end of the day, for a shot of brandy, a glass of wine, a “Macieira”, and two fingers of conversation.

Beyond this space, saloon-style doors led to another room where lunches and dinners were served. Initially, it consisted of small rooms where the women and men from the canning factories would come to have lunch. They would bring their meals and only buy drinks. Over time, the partitions disappeared, transforming into a single space with a long counter where my grandmother’s “bifanas” were served, and tables for lunches and dinners. Dishes included “arroz à Valenciana”, tripe with white beans, stew, chickpeas with cow’s foot, “pipis”, stuffed squid, “feijoada”, grilled sardines, and moray eels that were dried in the backyard and then fried, among many other delicacies.

The “Tasca” symbolised a small neighbourhood whose community evolved over time. The factories closed, the number of fishermen decreased, and new people emerged from garages, commerce, and services. By the early 1990s, it was sought after by many Portuguese and foreign tourists.

The family closed its doors at the end of the first decade of the 2000s. It later became a music bar, but the space has been closed for several years.

17 ANA
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17 ANA

“Olá, muito boa tarde amigos ouvintes, este é um programa Cidade+, um programa de Ana Bernardino, que vai ficar na vossa companhia entre as 15 e as 16h.”

Diziam que eu era a mulher dos sete ofícios. Comecei com 17 anos na Rádio Costa d’Oiro, a rádio católica do Algarve. Fiz a Voz do Estudante, em que entrevistava pessoas na Escola Secundária Poeta António Aleixo. Investigava histórias locais e regionais, divulgava o que acontecia. Fazia esperas à porta da Câmara e dizia: “Dêem-me informação sobre o que vão fazer”. Estive 20 anos na rádio. Vivia e dormia com o meu relógio de pulso. Nesta caixa deposito relógios de pulso que guardei, um microfone e os meus headphones.

Quando estamos no estúdio não sabemos quem nos ouve. Houve uma altura em que dizíamos: “Uma rádio de Portimão para Portugal e para o mundo” porque recebemos uma carta de alguém que nos ouvia na Alemanha.

Também comecei a pintar, com amigos. Fizemos exposições pelo Algarve e sacudimos espaços que estavam a abrir. Depois trabalhei dez anos numa agência de seguros. Vivia os problemas das pessoas. Os meus superiores diziam: “Ana, isto não é a Santa Casa da Misericórdia”. Aprendi muito, vi a maldade e a bondade. Havia muitas formas de ajudar. Nesta caixa deposito um desenho e uma concha de vieira, símbolo de proteção dos peregrinos do Caminho de Santiago, porque um dia fiz-me ao caminho e tive uma experiência única, de encontro com a natureza.

Um dia encontrei dois amigos escultores, o Arlindo e o Paulo, muito tristes. Não havia pedras para o Simpósio Internacional de Escultura. A minha família tinha uma grande pedreira. O meu pai disse que podiam ir lá buscar pedras. Nesta caixa deposito o trabalho do meu pai: uma pedra e um lápis que usava atrás da orelha.

A minha mãe é de uma zona rural. Temos uma propriedade que limpamos. Quando chega a época, a família junta-se para apanhar frutos secos. Nesta caixa deposito o trabalho da minha mãe: uma caixa com amêndoas, alfarrobas e figos.

Os fumeiros eram um ponto de desenvolvimento e sustento em Portimão. Os figos eram tratados e as operárias moldavam e colocavam-nos em seiras para exportação. Aprendi isto porque, com técnicos superiores de Arqueologia e História, restaurámos um fumeiro e antigas operárias explicaram como tudo acontecia. Existe um fumeiro abandonado junto à ponte velha, no início da Rua Infante D. Henrique. Vou enterrar esta caixa nesse edifício lindo, que quero ver restaurado. Gostava que fizessem aí o Museu do Fumeiro. Quero fazer isso na minha cidade.

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“Hello, good afternoon, friends listening; this is a program called Cidade+, hosted by Ana Bernardino, who will be with you from 3 pm to 4 pm.”

They used to say I was a woman of many trades. I started at 17 at Rádio Costa d’Oiro, the Catholic radio station of the Algarve. I did the “Voz do Estudante”, where I interviewed people at the Poeta António Aleixo Secondary School. I researched local and regional stories, spreading the word about what was happening. I would wait outside the Town Hall and say, “Give me information about what you will do.” I spent 20 years on the radio. I lived and slept with my wristwatch. In this box, I’m placing wristwatches I’ve kept, a microphone and my headphones.

We don’t know who is listening to us when we are in the studio. We once said, “A radio station from Portimão for Portugal and the world” because we received a letter from someone listening to us in Germany.

I also started painting with friends. We held exhibitions throughout the Algarve and energized spaces that were opening. Then, I worked for ten years at an insurance agency. I lived through people’s problems. My superiors would say, “Ana, this is not the Santa Casa da Misericórdia.” I learned a lot; I witnessed both malice and kindness. There were many ways to help. In this box, I’m depositing a drawing and a scallop shell, a symbol of protection for pilgrims on the Camino de Santiago, because one day, I set out on the pilgrimage and had a unique experience connecting with nature.

One day, I found two sculptor friends, Arlindo and Paulo, who were very sad. There were no stones for the International Sculpture Symposium. My family owned a large quarry. My father said they could go there to collect stones. In this box, I’m placing my father’s work: a stone and a pencil he used to keep behind his ear.

My mother is from a rural area. We have a property that we clean. When the season arrives, the family comes together to harvest nuts. I’m placing my mother’s work in this box: a box with almonds, carob pods, and figs.

The smokehouses were a point of development and sustenance in Portimão. The figs were processed, and the workers shaped and placed them in trays for export. I learned this because, along with higher-level technicians in Archae­ology and History, we restored a smokehouse, and former workers explained how everything happened. There is an abandoned smokehouse near the old bridge at the beginning of Infante D. Henrique Street. I will bury this box in that beautiful building, which I want to see restored. I would love for them to create the Smokehouse Museum there. I want to do this in my city.

18 ELISABETE CRISTINA
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18 ELISABETE CRISTINA

Sempre gostei de contar histórias. A minha mãe trabalhava no posto de turismo de Portimão. No primeiro andar havia um tribunal e ao lado uma biblioteca. Enquanto ela trabalhava eu passava horas a observar juízes, advogados, escrivães, turistas. Ia para a biblioteca e ficava a ver imagens, às vezes tentava ler. Ouvia histórias de viajantes, crimes, lia histórias nas caras das pessoas. Também queria contá-las. Fui para Lisboa e segui Teatro. Sou formadora e ensino tudo o que tem a ver com arte de palco e animação.

Os meus objetos são velhinhos. Tenho uma coleção de penas e escolhi estas três: uma de coruja, uma de gaivota, uma de papagaio. Lembro-me do momento em que as apanhei. Onde quer que encontrasse uma pena que me interessas – se, trazia comigo. E escrevia muito: poemas, pensamentos, palavras soltas. Encontrei a pena com que escrevia histórias. Devia ter uns 12 anos. O cano é oco e encaixa-se aqui a carga. Gostava do toque, parecia antigo. Aquele era o meu momento. Não era com qualquer pena, mas com aquela, rodeada de todas as penas que tinha no quarto. Sempre fui fascinada por gestos. Cada pessoa tem a sua assinatura de gestos. A escrever com penas, o movimento da mão é diferente. Eu escrevia rápido, às vezes não entendia a minha letra. Com esta pena, não. O movimento tinha de ser largo e cuidado. Havia tempo para pensar no que estava a escrever. Era o objeto que também estimulava a escrever. Honrava a escrita, a história contada. Tenho um grande respeito por transformar uma pena em algo que vai contar uma vida.

Às vezes, as pessoas chegavam tarde ao posto de turismo e não sabiam onde ficar. A minha mãe recebia-as na nossa casa. Passavam a noite e ouvíamos histórias. Depois recebíamos fotografias por correio, a agradecer. Uma vez, uma senhora veio com um bebé ao posto de turismo, fugida do marido. A minha mãe acolheu-a e lembro-me de estar a desenhá-la com o bebé. Hoje em dia, o edifício do posto de turismo, do tribunal e da biblioteca é o Teatro Municipal de Portimão, o TEMPO. Ali eu passei a minha infância a ouvir histórias. Depois também lá trabalhei, a dar aulas de teatro. Quando construíram o TEMPO eu não podia crer, era um ciclo que se cumpria. As histórias continuam a ser contadas naquele lugar. Gostava de lá enterrar as minhas penas.

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I have always loved telling stories. My mother worked at the tourist office in Portimão. On the first floor was a courthouse and a library next to it. While she worked, I spent hours observing judges, lawyers, clerks, and tourists. I would go to the library and look at pictures, sometimes trying to read. I listened to the stories of travellers and crimes and read the stories on people’s faces. I wanted to tell them, too. I went to Lisbon and studied Theater. I am a trainer and teach everything related to stage arts and animation.

My objects are old. I have a collection of feathers, and I chose these three: one from an owl, one from a seagull, and one from a parrot. I remember the moment I found them. Wherever I came across an interesting feather, I would bring it. I also wrote a lot: poems, thoughts, random words. I found the feather I used to write stories with. I must have been about 12 years old. The shaft is hollow and fits the ink here. I liked the feel of it; it seemed old. That was my moment. It wasn’t just any feather, but that one, surrounded by all the feathers I had in my room. I have always been fascinated by gestures. Each person has their own signature of gestures. Writing with feathers changes the movement of the hand. I wrote quickly. Sometimes, I couldn’t even read my handwriting. But not with this feather. The movement had to be comprehensive and careful. There was time to think about what I was writing. It was the object that also stimulated writing. I honoured the writing and the story being told. I greatly respect transforming a feather into something that will tell a life story.

Sometimes, people arrived late at the tourist office and needed help figuring out where to stay. My mother welcomed them into our home. They would spend the night, and we would listen to their stories. Later, we would receive photographs by mail, thanking us. Once, a woman came to the tourist office with a baby, having fled from her husband. My mother took her in, and I remember drawing her with the baby. Nowadays, the tourist office, courthouse, and library building is the Municipal Theater of Portimão, the TEMPO. That is where I spent my childhood listening to stories. I also worked there later, teaching theatre classes. When they built TEMPO, I couldn’t believe it; it was a cycle coming full circle. The stories continue to be told in that place. I want to bury my feathers there.

19 CATARINA
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19 CATARINA

O meu objeto é o Hospital de Portimão. Como é um edifício, trouxe uma fotografia. Foi onde eu nasci, no dia 17 de setembro de 2013, por volta das nove e meia da noite, e onde sempre curei as minhas doenças. A minha mãe estava nervosa antes de eu nascer porque havia falta de camas nos hospitais e não sabia para onde iria. Fui para lá de ambulância quando, aos 3 anos, caí na escola e abri a cabeça. Também foi para o Hospital de Portimão que fui socorrida quando tive um acidente na Maxmat. Tinha 3 anos e meio e um móvel caiu em cima de mim. No ano passado tive de ir lá mais de uma dezena de vezes no espaço de duas semanas, quando estive doente com uma mononucleose que me impediu de fazer a minha vida normal durante quase três meses. A mononucleose é uma espécie de varicela, só que mais grave. Fiquei internada uma noite e fui muito acarinhada pelos médicos e enfermeiros. Nessa estadia disseram-me que tinha sido a paciente que mais tinha gostado da canja de galinha. Fiquei conhecida como a menina que gostava da canja. Pedia por mais, era a única coisa que conseguia comer. Disseram-me que iam informar a cozinheira. Podíamos investigar o nome dela, a comida é importante. Quero ser cozinheira quando crescer.

Foi nesse hospital que conheci os meus irmãos, em 2017 e 2021. Também é nesse local onde o meu tio Edgar trabalha. Gostava de preservar este símbolo também pela memória do meu avô, que esteve lá internado. Lembro-me da Doutora Maria, uma pediatra. Era fixe e carinhosa. Lembro-me do enfermeiro Sérgio, que me acordou de madrugada para me dar um medicamento. Dois grandes amigos meus também foram lá tratados: a Leonor e o Francisco. Estavam com varicela. Eu perguntei se já tinham ido àquele hospital e eles contaram a história. Há muitas pessoas que devem ter memórias como as minhas. Quando passei lá a noite li um livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal. Leio mui – to. Acho que a leitura é uma boa medicina para quando estamos internados. Ajuda a passar o tempo e a esquecer a doença que temos, ajuda a estarmos mais livres. O karaté também é um remédio. Dá-me força, alegria e energia. Preciso dessas coisas quando estou doente. Recebi o cinturão laranja no dia antes de ser diagnosticada com a mononucleose. Gostava de enterrar, para além da foto, o cinturão e o livro do Harry Potter no jardim do hospital porque são medicamentos. Remédios para doenças.

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My object is the Portimão Hospital. Since it is a building, I brought a photograph. This is where I was born, on September 17, 2013, around nine-thirty at night, and where I have always gone to treat my illnesses. My mother was nervous before I was born because there was a shortage of beds in hospitals, and she didn’t know where she would go. I went there by ambulance when, at the age of 3, I fell at school and opened my head. It was also to the Portimão Hospital that I was taken when I had an accident at Maxmat. I was 3 and a half years old, and a piece of furniture fell on me. Last year, I had to go there more than ten times over two weeks when I was sick with mononucleosis, which kept me from living my everyday life for almost three months. Mononucleosis is a kind of chickenpox, but more severe. I was hospitalised for one night and was very well cared for by the doctors and nurses. During that stay, they told me that I was the patient who liked the chicken broth the most. I became known as the girl who liked the broth. I asked for more; it was the only thing I could eat. They said they would inform the cook. We could find out her name; food is important. I want to be a cook when I grow up. In this hospital, I met my siblings in 2017 and 2021. It is also where my uncle Edgar works. I want to preserve this symbol also in memory of my grandfather, who was hospitalised there.

I remember Dra. Maria, a paediatrician. She was nice and caring. I remember Nurse Sérgio, who woke me up in the middle of the night to give me medica­tion. Two of my great friends were also treated there: Leonor and Francisco. They had chickenpox. I asked if they had ever been to that hospital, and they told me their story. There must be many people who have memories like mine. While I spent the night there, I read Harry Potter and the Philosopher’s Stone. I read a lot. I think reading is good medicine for when we are hospitalised. It helps us pass the time and forget our illness; it helps us feel freer. Karate is also a remedy. It gives me strength, joy, and energy. I need those things when I’m sick. I received my orange belt the day before I was diagnosed with mononucleosis. I want to bury the photo, the belt, and the Harry Potter book in the hospital garden because they are medicines. Remedies for illnesses.

20 LAURA
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20 LAURA

O meu primeiro peluche chama-se Zoe e é uma zebra cor-de-rosa. Ainda que não a use muito, e apesar de já não ter metade de um olho, continua a ser importante. Tenho de ser sincera: se é para enterrar alguma coisa, tem de ser importante. Ou não vale a pena enterrar.

Foi o meu pai que me ofereceu a Zoe. Esta é a caixa de sapatos onde ela vai ficar. Fui eu que lhe pus este cachecol porque estava com medo que ficasse com frio. Também a deixei com uma mantinha, uma almofada, dois livros para ler, alguém com quem conversar, pipocas para comer e um jogo que fiz, para não a enterrar sozinha. Teve um acidente porque o meu cão roeu o seu olho. Eu andava sempre com ela ao colo, para trás e para a frente. Era uma companhia e sentia-me bem com ela. Não consegui curá-la do seu acidente. Teve um momento difícil.

Eu também tive um momento difícil. Uma vez fui ao médico, fiz um raio-X à barriga e tinha lá uma massa. Fui operada e depois tive de fazer quimioterapia. Estive muitos meses em casa, no ano passado. Tinha um cateter no peito e não podia ir à escola. Fiquei em casa desde Junho até Novembro e tirei o cateter em Março. Não podia sair. Passei muito tempo a ver filmes. Vi os oito filmes do Harry Potter, várias vezes. Já não havia mais filmes para ver! A minha mãe fazia-me massagens na testa e punha-me pepinos nos olhos, que eu adorava. Isso ajudava muito. Como eu chorava tanto os meus olhos ficavam assados e os pepinos refrescavam. Fiquei sem cabelo e toda a minha família também cortou o cabelo. O meu pai não precisou de cortar muito…a minha mãe já tem caracóis outra vez e eu também. Cuidaram de mim e eu agora cuido da Zoe. Como tenho um bocado de medo do escuro e pensei que ela ia ficar debaixo da terra, só a olhar para cima sem fazer nada, deixei lá estas coisas para ela se entreter. Também recebi muito carinho, como ela. Senti-me acompanhada pelo meu pai e pela minha mãe, e isso torna tudo mais fácil.

Gostava de enterrar a Zoe ao pé da praia. É o meu lugar favorito. Gosto de ir ao mar, de nadar, de fazer carreirinhas nas ondas. Podíamos enterrá-la nas dunas da Praia da Rocha, que tem aquela água cristalina.

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My first stuffed animal is a pink zebra named Zoe. Even though I don’t use her much, she is still important to me despite not having half an eye anymore. I have to be honest: if I’m going to bury something, it has to be important; otherwise, it’s not worth burying.

It was my dad who gave me Zoe. This is the shoebox where she will stay. I put this scarf on her because I feared she would get cold. I also left her with a blanket, a pillow, two books to read, someone to talk to, popcorn to eat, and a game I made so she wouldn’t be buried alone. She had an accident because my dog chewed her eye. I always carried her around in my arms, back and forth. She was a companion, and I felt good with her. I couldn’t heal her from her accident. She had a difficult moment.

I also had a difficult moment. Once, I went to the doctor and had an X-ray of my belly, and there was a mass there. I had surgery and then had to undergo chemotherapy. I spent many months at home last year. I had a catheter in my chest and couldn’t go to school. I stayed home from June until November and had the catheter removed in March. I couldn’t go out. I spent a lot of time watching movies. I watched all eight Harry Potter films several times. There were no more movies to watch! My mom would give me forehead massages and put cucumbers on my eyes, which I loved. That helped a lot. Since I cried so much, my eyes became puffy, and the cucumbers were refreshing. I lost my hair, and my whole family cut their hair too. My dad didn’t need to cut much… my mom has curly hair again, and so do I. They took care of me, and now I take care of Zoe. Since I was a bit afraid of the dark and thought she would be buried under the ground just looking up and doing nothing, I left these things for her to keep entertained. I also received a lot of affection, just like her. My dad and mom accompanied me, and that made everything easier.

I want to bury Zoe near the beach. It’s my favourite place. I love going to the sea, swimming, and playing in the waves. We could bury her in the dunes of Rocha Beach, which has crystal-clear water.

21 ABDEL
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21 ABDEL

Sou da ilha de Santiago, em Cabo Verde, e vim com seis anos para Portimão, fiz aqui sete. Desde aí que tenho este boneco. Dei-lhe o nome de Clifford. O meu animal favorito é o cão. Foi a minha irmã que me ofereceu. Eu tinha medo do escuro e via monstros, não conseguia dormir e este cão ajudava. Sonhava que tinha monstros debaixo da cama e agarrava o meu cão.

Em Cabo Verde tinha outros peluches. A cidade onde vivia, a Praia, era mais pequena que Portimão. Há regras diferentes na Praia e em Portimão. Em Cabo Verde não há tantos carros como aqui. Eu vivia em frente a um campo de futebol que também era uma estrada. Quando os carros passavam tínhamos de sair de lá e depois podíamos voltar a jogar. Lá não há muitos prédios, só casas. Os meus pais explicaram-me que quando entro neste prédio não posso fazer muito barulho, mas ouvimos Cesária Évora, Soraia Ramos e música popular de Cabo Verde.

Saio muito à rua para brincar. Agora já vou à escola sozinho e fico no parque com os meus amigos. Não me custou fazer amigos aqui, foi muito fácil. Tenho muitos amigos. Pedem para tocar no meu cabelo, perguntam por Cabo Verde. Eu digo que é mágico, quando sais do mar não sentes frio como aqui, é quentinho, mas eu tinha medo dos tubarões.

Nunca ninguém se meteu comigo por causa da cor da minha pele, mas já aconteceu com uns amigos. Uns rapazes da escola gozaram com o nome de um e com o cabelo de outro. Diziam que era um cabelo de ninho, que dava para os pássaros. Ele respondeu: “Pelo menos tenho cabelo!”. Eu perguntei ao meu amigo o que é que se passava e ele disse que os rapazes estavam a gozar com o seu cabelo. Respondi: “Ignora. Para mim és um amigo perfeito e o teu cabelo é fofo”.

Muitos meninos em Portimão ficam no telemóvel, a jogar. Eu fico na rua com a bicicleta. Gosto da rua, estou mais livre. Normalmente acordo, tomo banho, apanho o autocarro, vou para a escola e depois vou para a barbearia dos meus pais. Fica no centro, ao pé da Zona Ribeirinha, e chama-se Cabeleireiro Flávio. Quero enterrar o Clifford na Alameda, perto da barbearia, onde brinco com os meus amigos. Gosto da parte da relva onde jogamos à bola, há lá uma árvore e alguns arbustos. As orelhas do Clifford têm cores diferentes. Acho fofinho. Como o cabelo do meu amigo.

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I am from the island of Santiago in Cape Verde, and I came to Portimão when I was six years old; I’ve been here for seven years. Since then, I’ve had this stuffed animal. I named him Clifford. My favourite animal is a dog. It was my sister who gave it to me. I was afraid of the dark and saw monsters; I couldn’t sleep, and this dog helped me. I dreamed that monsters were under the bed, and I would hold my dog tight.

In Cape Verde, I had other stuffed animals. The city where I lived, Praia, was smaller than Portimão. There are different rules in Praia and Portimão. In Cape Verde, there aren’t as many cars as here. I lived in front of a football field that was also a road. When cars passed, we had to leave, and then we could return to playing. There are few buildings there, only houses. My parents said I shouldn’t make too much noise when entering this building. Still, we listened to Cesária Évora, Soraia Ramos, and popular music from Cape Verde.

I go out a lot to play. I go to school alone and hang out in the park with my friends. I didn’t find it hard to make friends here; it was very easy. I have many friends. They ask to touch my hair and ask about Cape Verde. I tell them it’s magical; when you come out of the sea, you don’t feel cold like here; it’s warm, but I was afraid of sharks.

No one has ever bothered me because of the colour of my skin, but it has happened to some of my friends. Some boys at school ridiculed one friend’s name and another friend’s hair. They said it looked like a bird’s nest and that birds could live in it. He replied, “At least I have hair!” I asked my friend what was happening, and he said the boys were teasing him about his hair. I replied, “Ignore them. You’re a perfect friend, and your hair is cute.”

Many boys in Portimão spend their time on their phones playing games. I prefer to be outside on my bicycle. I like being outdoors; I feel freer. Usually, I wake up, shower, catch the bus, go to school, and then go to my parents’ barbershop. It’s in the centre, near the waterfront, called “Cabeleireiro Flávio”. I want to bury Clifford in the Alameda, near the barbershop where I play with my friends. I like the grassy area where we play football; there’s a tree and some bushes. Clifford’s ears have different colours. I think he’s cute, just like my friend’s hair.

22 MARIA N
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22 MARIA N

“Um Quarto Só Para Si”, de Virgínia Woolf, é um ensaio de 1929 sobre a condição da mulher e a desigualdade de género que, passado um século, continua tão atual. Foi a leitura deste livro, lido numa viagem de comboio, que mudou a minha vida. Deu-me coragem para sair do meio conservador e patriarcal em que vivia, de romper barreiras e buscar uma mudança em que pudesse caminhar orientada pelo meu próprio pensamento.

Neste livro, Virgínia Woolf defende que as mulheres devem ter a coragem de sair do ambiente que as oprime para onde possam ter um pensamento livre. Para isso é fundamental conseguirem ter independência económica e um espaço para criarem e desenvolverem a sua maneira de estar no mundo.

Foi este livro que me trouxe a Portimão, aos 26 anos, para uma cidade que não conhecia, para fazer um estágio de especialidade como professora. Foi uma espécie de fuga. Deixei uma vida confortável e vim com a minha filha, os meus livros e o meu piano.

Aqui, consegui seguir o meu caminho num ideal humanista, numa vida com causas e menos sujeita à pressão exterior. Nesta cidade fui e sou professora. Este livro contribuiu para que a minha vida profissional tivesse um pendor para os alunos que por alguma razão se encontram em situação de desvantagem escolar e/ou social. Atuo no sentido de tentar dissolver impedimentos, pois acredito que a escola deve de ser um lugar inclusivo, de liberdade intelectual, de luta contra os preconceitos e as assimetrias. A luta pela igualdade de direitos e de género tem de ser um trabalho diário. É preciso que cada um encontre o seu caminho mais genuíno. Para isso, também é fundamental cultivar o gosto pela leitura nos jovens. A leitura dá uma grande densidade de pensamento e contribui para a capacidade de reflexão, de desenvolvimento interior, de poder, de defesa, de liberdade.

A par deste livro, tenho livros por todo o lado: durmo com eles, levo-os no carro, divido-os com os alunos.

Vim de longe, fiquei na cidade e em nada me arrependo. Encontrei aqui uma das possibilidades de vida que desejava ter.

Portimão sempre acolheu bem os projetos que fui desenvolvendo.

Sou professora e guardo livros: é essa a minha ordem no mundo. Faço o que sou, com alegria, seguindo o pensamento de Espinosa.

Penso que quem guarda livros deixa algo importante para os outros, em proveito dos outros.

Vou enterrar aqui o meu livro, perto da casa onde morei quando cheguei à cidade e onde tive uma olaria, ainda este local era um casarão antigo e abandonado.

Enterro um tesouro. Os livros contêm fortunas eternas.

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Virginia Woolf’s A Room of One’s Own, a 1929 essay about the condition of women and gender inequality, remains relevant a century later. Reading this book on a train journey changed my life. It gave me the courage to break away from the conservative and patriarchal environment in which I lived, to break down barriers, and to seek a change guided by my own thoughts.

In this book, Virginia Woolf argues that women must have the courage to leave their oppressive environment and find a place to think freely. They need economic independence and a space to create and develop their own way of being.

This book brought me to Portimão, a city I didn’t know, at 26 to do a specialized internship as a teacher. It was a kind of escape. I left a comfortable life and came with my daughter, books, and piano.

Here, I could follow my path in a humanist ideal, in a life with causes and less subject to external pressures. In this city, I became and continue to be a teacher. This book contributed to shaping my professional life towards students who, for some reason, find themselves in situations of educational and/or social disadvantage. I work to dissolve barriers because school should be an inclusive place of intellectual freedom, fighting against prejudice and asymmetries. The struggle for equality of rights and gender must be a daily endeavour. Each person must find their most genuine path. To do this, it is also crucial to cultivate a love of reading among young people. Reading provides a depth of thought and contributes to the capacity for reflection, personal development, empowerment, defence, and freedom.

I have books everywhere, including this one. I sleep with them, carry them in the car, and share them with my students.

I came from afar, stayed in the city, and have no regrets. I found here one of the possibilities of life I wanted to have.

Portimão has always welcomed the projects I have developed.

I am a teacher and a bookkeeper: this is my order in the world. I do what I am, with joy, following Spinoza’s thought.

Those who keep books leave something meaningful for others, for the benefit of others.

I will bury my book here, near the house where I lived when I arrived in the city and where I had a pottery studio in a place that was once a large old, abandoned mansion.

I bury a treasure. Books contain eternal fortunes.